Quando estive no Pantanal, no final de 2022, fazia pouco mais de dois anos que o bioma tinha passado por aquele terrível incêndio de 2020. Ainda que a região onde estávamos não tivesse sido tão afetada pelo fogo, era impossível estar lá e não passar um filme na cabeça com as imagens daquele paraíso ardendo em chamas.
Por isso mesmo foi emocionante ver de perto a beleza, a força e a intensidade da natureza na maior planície alagável do mundo, lugar de dois mil tipos de plantas e centenas de espécies animais – embora naquele momento regiões normalmente alagadas estivessem secas, numa demonstração clara de como o ecossistema da região já estava sendo afetado por essas agressões.
A cada momento, dentro de um barco no rio ou apenas contemplando a paisagem, entre árvores, tuiuiús e araras azuis, eu pensava o quanto nós, bichos urbanos, aculturados por prédios, cimento e dinheiro, enxergamos a natureza como algo apartado de nós. Algo que está lá longe, não aqui entre nós, como parte da gente, como uma coisa só.
Não nos vemos como parte da natureza porque nossa “civilização” virou as costas para a vida natural há muito, muito tempo. Quem está e sempre esteve integrado são os povos indígenas e as comunidades tradicionais, aqueles que trazem na sua cosmovisão o entendimento que há um ecossistema natural a reger as coisas.
“Quando os índios falam que a Terra é nossa mãe, dizem ‘Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita’. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos o terminal nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra, desorganiza o nosso mundo”, disse Ailton Krenak em uma entrevista há alguns anos. Essa nova temporada de incêndios no Pantanal é mais um exemplo de como desorganizamos e agredimos o planeta.
Reprise da catástrofe
A situação é assustadora. Quatro anos depois do fogo que destruiu 26% do bioma, o Pantanal e o Cerrado registram agora um recorde de queimadas no primeiro semestre de 2024. O fogo já destruiu 680 mil hectares só neste ano. A quantidade de focos de incêndios na região foi a maior para esse período desde 1988, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) passou a monitorar as queimadas no bioma.
Quase 100% dos focos de incêndio (95% para ser exato) acontecem em áreas privadas, segundo dados do programa BDQueimadas, do Inpe. E não há indícios de que tenham sido provocados por causas naturais, como raios. Isso quer dizer que a ação humana é a grande responsável, com as queimadas, por exemplo.
Os incêndios nessa escala por si só já são uma tragédia, mas a situação fica ainda mais dramática quando ampliamos o quadro. Um estudo da rede MapBiomas divulgado há poucos dias mostra que o Pantanal foi o bioma que mais secou ao longo da série histórica, iniciada em 1985. A superfície de água anual (pelo menos seis meses com água) em 2023 foi de 382 mil hectares, 61% abaixo da média histórica.
O ano de 2023 foi 50% mais seco que 2018, quando houve a última grande cheia no Pantanal. E olha que há seis anos a água na região já estava abaixo da média histórica. “Em 2024 não tivemos pico de cheia. O ano registra um pico de seca, que deve se estender até setembro. O Pantanal em extrema seca já enfrenta incêndios de difícil controle”, afirma Eduardo Rosa, do MapBiomas.
Impactos do desastre
Conectado a três importantes biomas brasileiros, a Amazônia, o Cerrado e a Mata Atlântica, o Pantanal é uma espécie de elo entre a Bacia Amazônica e a Bacia do Prata. Isso significa que um desequilíbrio no Pantanal provoca impacto nos biomas vizinhos e vice-versa, incluindo também a área do Chaco (nome dado ao Pantanal que fica no norte do Paraguai e leste da Bolívia).
A região pantaneira tem sido afetada de diferentes formas, e por ação humana. Uma das razões são as mudanças climáticas, com alteração no regime de chuvas, o que tem secado e superaquecido o ecossistema, dizem os cientistas. Outro grave problema são os impactos provocados pelas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) instaladas onde nascem os rios que abastecem o Pantanal, o que pode provocar mudanças importantes no ecossistema. “Esses empreendimentos alteram a ciclagem de nutrientes, a migração da ictiofauna e as dinâmicas da desova, que é inviabilizada pela barreira física que impede os peixes de subir rio acima”, escrevem os pesquisadores Daniela de Ouro Mamed e Ener Vaneski Filho no livro “O direito socioambiental e o Pantanal: da emergência ecológica à proteção jurídica efetiva”.
Um relatório da WWF, de 2021, alertava que as hidrelétricas em operação na Bacia do Alto Rio Paraguai e os planos de ampliação dessa rede colocavam a bacia e o bioma em risco. "As usinas projetadas para a região trazem um potencial pequeno de geração de energia elétrica e grandes impactos ambientais. Não precisamos perder os fluxos de água e o seu capital associado se há um potencial de substituir todos estes projetos por fontes alternativas", disse na época ao G1 Cássio Bernardino, coordenador de projetos do WWF-Brasil.
Tudo interligado
Outra razão para o bioma estar secando é que os chamados “rios voadores”, que levam água da região amazônica para o Pantanal e outras áreas do Brasil, estão diminuindo por causa do desmatamento na Amazônia. Além disso, muitas áreas próximas ao Pantanal estão sendo transformadas em pastos ou usadas para a produção de soja, provocando desequilíbrios. O bioma também sofre com o garimpo ilegal, que polui a água, adoece a população local e prejudica a agricultura.
Como se vê, o cardápio de destruição do Pantanal está servido. Se esse processo continuar, o bioma será destruído de forma irreversível, com impactos gravíssimos para a população e a agricultura locais e todo o país. É preciso salvar o Pantanal antes que seja tarde demais, pois, como dizia o grande poeta Manoel de Barros, que nasceu no Mato Grosso e tanto escreveu sobre o Pantanal, somos todos devedores destas águas.
FONTE: EXAME