Ao longo do primeiro ano de vigência das modificações introduzidas pela lei 14.112/20 na Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/05 - LRF), já foi possível testemunhar as primeiras experiências práticas de utilização dos artigos 20-A a 20-D, que estabeleceram base legal expressa e requisitos para a adoção de métodos consensuais de resolução de controvérsias nos processos de insolvência, tanto incidentalmente quanto previamente, ao ajuizamento do pedido de recuperação judicial.
Tais previsões não são, propriamente, uma inovação no sistema legal, pois estão alinhadas com o modelo cooperativo delineado pelos princípios norteadores do Código de Processo Civil (CPC) e com o teor da lei 13.140/15 (Lei de Mediação) e da recomendação 112/21 do Conselho Nacional de Justiça.
No entanto, é interessante registrar que o art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 14.112/20 não apenas incentivou a adoção da mediação como, também, permitiu a obtenção de uma tutela de urgência cautelar, suspendendo execuções propostas contra o devedor pelo prazo de 60 dias e, assim, possibilitando uma etapa de negociação prévia ao ajuizamento do pedido de recuperação judicial.
Para o deferimento do pedido de tutela de urgência, o interessado deverá comprovar o preenchimento dos requisitos legais para requerer recuperação judicial; a instauração de procedimento de negociação ou mediação perante o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) ou de câmara especializada; e o preenchimento dos requisitos gerais para a concessão de tutela cautelar, previstos no artigo 305 e seguintes do CPC1.
Apesar de ainda serem escassas as decisões judiciais de segundo grau que se debruçaram sobre o tema no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP)2, é possível perceber que o entendimento vigente, oriundo de decisões proferidas por juízes de primeiro grau, já está delimitando e, de certa forma, modificando os requisitos legais trazidos pela reforma da LRF.
Requisitos a serem comprovados
Um primeiro ponto que chama atenção é que persiste a dúvida sobre quais requisitos deverão ser comprovados pelo devedor para o ajuizamento da tutela cautelar antecedente. A despeito de o parágrafo único do artigo 20-B da LRF dispor que o benefício deve ser concedido para as empresas que "preencham os requisitos legais para requer recuperação judicial", constatou-se na prática um entendimento mais permissivo em que se autorizou a suspensão de execuções mediante a comprovação de dificuldade financeira e de que o prosseguimento das execuções poderia colocar em risco a sua saúde financeira3. Por outro lado, também se viu entendimento mais restritivo4, que exigiu a comprovação formal dos requisitos previstos nos artigos 48 e 51 da LRF, entendimento que parece ser mais consentâneo do entendimento doutrinário a respeito do tema5.
Também é possível verificar que, embora o art. 20-B, parágrafo primeiro, da LRF exija que o interessado comprove, no momento do ajuizamento da tutela cautelar, a prévia instauração de procedimento de negociação ou mediação perante o respectivo Cejusc ou câmara especializada, dado que a norma utiliza-se do termo inequívoco "já instaurado", há decisões que deferiram o pedido de suspensão e determinaram, ato contínuo, a designação da mediação mediante a nomeação do mediador responsável6.
Período de suspensão
Destaca-se, também, o fato de que o prazo de 60 dias de suspensão já foi, em algumas oportunidades, prorrogado por igual período7. Apesar da aparente boa intenção dos juízes em conceder tal pleito, essa sucessiva prorrogação, como foi consignado em decisão proferida no processo 1011311-25.2021.8.26.0037, "afastaria o objetivo do legislador ao permitir o ajuizamento desta medida judicial, de caráter excepcional, com prejuízo aos credores"8 e, até mesmo, poderá propiciar condições para a adoção de medidas tendentes à dilapidação patrimonial.
Suspensão das execuções
Uma questão igualmente relevante diz respeito ao alcance dos efeitos das decisões que deferiram a suspensão das execuções. Nos casos analisados9, inexistiu identificação na petição inicial do polo passivo da tutela cautelar, ou seja, a indicação de quais credores participariam da negociação prévia. As decisões que deferiram o pedido de suspensão tiveram eficácia contra todos os credores, assim como ocorre durante o stay period.
Conclusões preliminares
Em suma, apesar da clareza da redação do artigo 20-B, parágrafo primeiro, da LRF, já existem decisões proferidas por juízos de primeiro grau que interpretam tais disposições de modo elástico, para autorizar a suspensão de execuções sem o preenchimento dos requisitos legais para requerer recuperação judicial; não exigir a instauração de mediação prévia perante o Cejusc como requisito; prorrogar o prazo de suspensão de 60 dias por igual período; e conferir eficácia contra todos credores, de modo indistinto, à decisão que concede a tutela cautelar.
Apesar de praticamente ainda não existirem pronunciamentos em segundo grau sobre a matéria, o raciocínio adotado em primeiro grau até então reclama uma maior reflexão. Afinal, a lógica da LRF e da lei 14.112/20 era a de evitar o ajuizamento desenfreado de pedidos de recuperação judicial.
De certo, não era a intenção que tal medida fosse utilizada como um mero "suspiro" de curto prazo para empresas em crise, podendo, até mesmo, configurar um período de stay period desprovido dos controles e da supervisão inerentes a uma recuperação judicial, o que pode ocasionar eventuais medidas de esvaziamento ou desvio patrimonial, em prejuízo dos credores, da própria empresa e demais interessados.
Igualmente, o entendimento que confere eficácia ampla, indistinta, contra todos credores, para a decisão que concede a suspensão das execuções também merece maior discussão pois, mantido o entendimento exposto, será conferido um stay period antecipado de 120 dias. Inclusive, cabe a indagação se tal período será descontado integralmente do período de stay de 180 dias, o que faria com que a recuperação judicial somente contasse com 60 dias para chegar à Assembleia Geral de Credores. Esse exíguo período seria inviável e, certamente, resultaria em uma indesejada extensão quase automática.
Em adição a essa interpretação ampliativa das decisões analisadas e as preocupações expostas, é curioso, também, notar que em nenhum dos casos analisados houve sucesso efetivo na mediação ou o ajuizamento da recuperação judicial foi, de fato, evitado. Algumas hipóteses podem explicar tal consequência como a falta real de interesse dos devedores em negociarem com seus credores ou, até mesmo, a percepção de que as negociações prévias não surtirão qualquer efeito na crise vivenciada pela empresa.
O que se nota, portanto, passado um ano de vigência das alterações da LRF introduzidas pela lei 14.112/20 é que, a despeito da boa intenção do legislador, a mediação e a tutelar cautelar antecedente ainda não vêm sendo utilizadas de modo efetivo, considerando a limitada amostra de casos práticos e a aparente inexistência de situações bem-sucedidas.
O procedimento, se bem aplicado, poderia propiciar soluções negociadas e evitar litígios, mas o Poder Judiciário deverá posicionar-se de tal maneira que se evite que o instituto se torne mero instrumento de procrastinação do cumprimento de obrigações.
Assim, para que o intento do legislador se concretize, da análise dos primeiros casos, conclui-se que ainda é necessária uma uniformização da interpretação das novas disposições legais o que, em larga medida, caberá aos magistrados de segundo grau. De modo similar, há também que ocorrer um amadurecimento no uso do mecanismo para situações efetivamente adequadas ao uso da mediação, o que anda, também, pari passu com a disseminação da cultura da utilização de métodos adequados de resolução de disputas.
FONTE: MIGALHAS