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Afogado em dívidas? Conheça as etapas da “recuperação judicial” prevista na Lei do Superendividamento

Segunda, 19 Julho 2021

Após quase dez anos de tramitação no Congresso Nacional, a Lei do Superendividamento – que procura dar mais transparência aos contratos de empréstimos e tenta impedir condutas abusivas – finalmente está em vigor. Sancionada há poucos dias pelo presidente Jair Bolsonaro, ela estabelece mudanças na relação entre os consumidores e seus credores, dentre as quais uma chamou especial atenção de quem não está conseguindo sair do vermelho: a possibilidade de repactuar o conjunto das dívidas, com a garantia de um “mínimo existencial”.

Mal comparando, funciona como uma espécie de “recuperação judicial”, expediente que empresas em dificuldade financeira invocam para renegociar suas dívidas com os credores, mantendo suas atividades. “Esse arranjo permite negociações alinhadas com a capacidade de pagamento total do consumidor”, diz Ione Amorim, economista do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). Até aqui, segundo ela, não havia mecanismos formais que unificassem os débitos na hora de propor uma repactuação. “Se tivesse dívidas em dois bancos diferentes, o consumidor precisaria negociar individualmente com cada um”.

Na prática, o endividado terá a possibilidade de apresentar ao conjunto dos seus credores um plano único de pagamento das dívidas. Se ele não for aceito, quem definirá as condições da quitação será um juiz – e de maneira compulsória, o que, espera-se, deverá despertar o interesse dos credores em chegar a um acordo.

 O que é alguém “superendividado”?

Para acionar a possibilidade de renegociação prevista na Lei do Superendividamento, é preciso ser um “superendividado”, como o texto chama os consumidores de boa-fé impossibilitados de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu “mínimo existencial” – que são os recursos necessários para manter condições elementares de uma vida digna, conforme explica o advogado Leandro Caldeira Nava, sócio do escritório Nava Sociedade de Advocacia.

O Idec calcula que haja 30 milhões de superendividados no país. Uma pesquisa recém-divulgada pela fintech Leve, feita com funcionários de empresas de setores variados, indica que 25% têm mais dívidas (financiamentos, empréstimos e parcelamento de cartão de crédito) do que podem pagar.

A lei não estabelece um valor ou um percentual da renda que caracterize o mínimo existencial. Portanto, cabe ao consumidor endividado atestar essa condição. “Para demonstrar o superendividamento, ao negociar com as empresas credoras, o consumidor deve levantar suas faturas de consumo e documentos relativos à renda”, diz Nava.

O advogado ressalta que o foco do superendividamento está nos compromissos financeiros assumidos em função de uma relação de consumo, como contas de água, luz e telefone, ou débitos relacionado a alimentação e saúde, entre outros. A lei estabelece que podem entrar aí operações de crédito, compras a prazo e contas por serviços de prestação continuada. Não são consideradas as dívidas decorrentes da compra de produtos e serviços de luxo de alto valor – e nem, é claro, as realizadas mediante fraude ou má-fé.

Um outro detalhe: a repactuação das dívidas não abrange empréstimos com garantia real, financiamentos imobiliários e crédito rural. “Esse tipo de empréstimo é destinado à formação de patrimônio e o bem – como o imóvel ou o caro financiado – serve de garantia para o débito. Não coloca em risco a sobrevivência da pessoa”, explica o advogado Eduardo Simon Pellaro, coordenador da área Cível Estratégica do escritório NWADV.

O que é o plano de pagamento das dívidas?

Para realizar a renegociação, o consumidor precisará elaborar um plano de pagamento das suas dívidas. Segundo Pellaro, nele devem constar todas as informações sobre como o endividado pretende quitar os débitos.

“O plano deve informar expressamente o eventual deságio [desconto] proposto, as datas de pagamento, a suspensão ou extinção de ações em tramitação, a retirada do nome do devedor dos cadastros de inadimplentes, entre outras informações”, diz. Isso porque caso seja aceito, o plano substitui as dívidas originais, e ações que tenham sido abertas contra o consumidor precisam ser suspensas. Da mesma forma, se já estiver com o “nome sujo” nos birôs de crédito, as instituições que o incluíram lá devem providenciar a retirada.

“O devedor deve apresentar o máximo de documentos possíveis relativos às dívidas cuja suspensão e parcelamento ali se pretende. Ou, se não os tiver, solicitar que o fornecedor de serviços ou produtos traga aos autos informações complementares”, explica Pellaro.

Nava ressalta que o consumidor deve elaborar o plano preservando o mínimo existencial, de acordo com suas fontes de renda. “Se for um autônomo sem comprovantes de renda, o consumidor deve fazer uma auto-declaração de quanto ganha, que será interpretada como um ato de boa-fé”, explica. Além disso, o endividado precisa também declarar que não tomará ações que possam agravar a sua situação – como fazer novos empréstimos, segundo Nava.

Como funciona a etapa da conciliação?

De posse do plano de pagamento, o passo seguinte é a conciliação. Nessa etapa, todos os credores serão convocados para uma audiência de conciliação, em que a proposta de pagamentos feita pelo superendividado será apresentada. Essa audiência, segundo a lei, poderá tanto ser conduzida na Justiça, por um juiz, quanto por órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como os Procons.

O Procon-SP, por exemplo, já está colocando para funcionar uma central de negociações – ela deverá estar disponível aos consumidores nas próximas duas semanas, segundo o diretor-executivo Fernando Capez. Por meio de um formulário no site da entidade, o consumidor deverá se identificar, assumir a condição de superendividado, indicar todos os seus credores e o valor total dos débitos.

“Estimamos que uma pessoa não leve mais do que dois minutos para fazer o cadastro”, diz Capez. Por meio de convênios que estão sendo estabelecidos com entidades como Febraban e birôs de crédito como Serasa e Boa Vista SPC, a central do Procon-SP ainda fará uma checagem adicional de outros débitos que eventualmente o consumidor tenha em seu nome, para que todos sejam incluídos na negociação.

Segundo Capez, os técnicos do Procon-SP inclusive poderão auxiliar o consumidor na elaboração do plano de pagamento da dívida, com base nas informações inseridas no formulário. A audiência, realizada online, será conduzida por um conciliador do órgão. Se houver acordo, segundo Capez, o plano começa a valer. Se não, a central do Procon-SP encaminhará a documentação para a Defensoria Pública, com a qual tem um convênio, para que o consumidor possa seguir com a negociação na Justiça.

“A renegociação tende a causar uma enxurrada de ações na Justiça, e esse não é o objetivo da lei. O que ela propõe é devolver a vida consumerista ao superendividado, e por isso estamos oferecendo essa alternativa”, afirma Capez. A central de negociação do Procon-SP é a primeira a ser criada no país e atende apenas os consumidores do estado de São Paulo. Segundo Capez, no entanto, todos os Procons possuem algum tipo de serviço de atendimento a pessoas endividadas, podendo orientar ou mediar o processo. Por isso, ele aconselha os interessados a começar jornada da negociação pelos órgãos de defesa do consumidor, mesmo que não tenham um núcleo específico.

Nava concorda que a via administrativa, por meio de órgãos de defesa do consumidor, deva ser o primeiro passo. Outros especialistas, no entanto, destacam que, segundo a lei, esse caminho não é obrigatório.

“Não existe obrigatoriedade do consumidor de procurar os Procons ou o Poder Judiciário primeiro para repactuar as suas dívidas, ele pode optar por qual via gostaria de seguir”, diz Juliana Oliveira Domingues, Secretária Nacional do Consumidor no Ministério da Justiça. “O que é importante anotar é que a via administrativa, por meio dos Procons, ocorre sempre sem custos. Já em relação ao Judiciário, pode haver a necessidade de pagamento de custas judiciais e honorários advocatícios”.

Segundo a advogada Fernanda Zucare, especialista em Direito do Consumidor e Saúde, dependendo do valor das dívidas o superendividado pode entrar com o processo de repactuação em um Juizado Especial Cível, também conhecido como “juizado de pequenas causas”. Para valores de até 20 salários mínimos, não é preciso acionar um advogado. Para valores entre 20 e 40 salários mínimos, sim. E para valores acima disso, o caminho é buscar a Justiça comum, também com advogado.

Um detalhe: os credores que não comparecerem à conciliação terão seus créditos suspensos, e a aplicação de juros e correção monetária será interrompida, segundo Pellaro. Eles ficarão sujeitos ao plano que for aprovado, porém vão para o “fim da fila” – serão pagos apenas após os credores que compareceram.

Não deu acordo. O que acontece depois?

Imagine que depois de todos os passos anteriores, os credores – na audiência de conciliação em juízo ou em um órgão de defesa do consumidor – não aceitem o plano de pagamento proposto pelo endividado. O que acontece?

Nava explica que, nesse caso, é o juiz quem definirá as condições de pagamento aos credores em um “plano judicial compulsório”, como define a lei.

Segundo a Lei do Superendividamento, o plano compulsório deve assegurar aos credores, pelo menos, o pagamento do “principal” – ou seja, o valor que o consumidor tomou emprestado em uma operação de crédito ou o valor original de uma conta de consumo (sem contar multas ou juros). Também precisa constar no documento qual índice de preço será utilizado para corrigir os pagamentos, que devem ser parcelas mensais de mesmo valor. A primeira precisa ser paga em até 180 dias da homologação do plano, com prazo limite de cinco anos.

Diante da possibilidade de deliberação das condições pelo juiz, não é interessante para os credores deixar de participar do processo, diz Ione, do Idec. “Quando não participa, o banco ou outro credor abre mão de negociar e precisa aceitar o plano compulsório”, afirma. Isso, segundo ela, dele elevar a presença deles na etapa de conciliação.

Segundo ela, ao contrário do que algumas pessoas pensam, a Lei do Superendividamento não é um incentivo à inadimplência, nem um perdão ao consumidor. Uma das razões é o fato de que uma nova repactuação nos mesmos moldes só pode ser solicitada novamente depois de dois anos do fim do primeiro plano de pagamento das dívidas.

O que mais a Lei do Superendividamento prevê

Além da repactuação das dívidas, a Lei do Superendividamento – que alterou o Código de Defesa do Consumidor – também estabeleceu outras mudanças. Entre as principais, segundo o Idec, estão:

• A Lei do Superendividamento determina que os bancos estão proibidos de ocultar os riscos de contratação de um crédito, devendo cultivar a transparência ao consumidor durante o processo;

• Segundo a lei, qualquer pressão dos bancos e instituições financeiras para seduzir os consumidores, envolvendo prêmio, por exemplo, é ilegal, especialmente contra pessoas idosas, analfabetas ou vulneráveis;

• Com a nova Lei, as instituições financeiras são obrigadas a informar previamente aos consumidores o custo efetivo total do crédito contratado, incluindo todos os juros, tarifas, taxas e encargos sobre atraso, por exemplo.

 

FONTE: INFOMONEY