Há quatro meses, enquanto esquentava no mercado brasileiro o debate sobre o uso de redes sociais por alguns profissionais para dar “dicas” sobre investimentos, o executivo e professor de finanças Marcelo de Paula do Desterro começava a se reunir com um grupo de alunos com uma outra proposta: discutir finanças “na prática”.
A ideia inicial, conta Desterro, era levar para o ambiente virtual — aos domingos, logo cedo, às 8h — aquela conversa que acabou não dando tempo de fazer no horário regular das aulas. “Nós, professores, temos que seguir um cronograma de conteúdo. Mas, às vezes, vem uma pergunta, uma notícia, dá vontade de falar mais sobre o assunto, e não dá tempo. Sempre fico um pouco agoniado depois da aula, pensando que poderia ter falado mais ou melhor sobre determinado ponto ”, conta Desterro.
Ele, então, abriu o espaço para aprofundar temas específicos com os alunos que estivessem interessados. “Mas sempre com a abordagem prática, para mostrar a vida real no mundo das finanças”, diz.
Desterro estudou em colégio militar no Rio de Janeiro, é graduado em engenharia mecânica aeronáutica pelo ITA, fez mestrado no Coppead/UFRJ em finanças. No início dos anos 2000, deixou de ser oficial da aeronáutica para transformar-se em executivo. Tem passagens pelas áreas financeiras de Vale, Log-in, Wilson Sons — onde trabalhou no IPO—, Eneva e na da Sistac, líder no segmento de inspeção, manutenção e reparo offshore na indústria de óleo e gás no Brasil, onde é o diretor financeiro há cinco anos. Desde 2003, ele concilia a carreira corporativa com as aulas nas principais escolas do Rio.
Um desejo inicial dele com o grupo foi mostrar para jovens estudantes que existe espaço para profissionais dessa área também dentro das empresas, não só em bancos ou gestoras. E não há intenção de falar em “day trade”.
“Nunca vou sugerir compra e venda de ações. Queremos dar o ferramental na mão da pessoa. Construir uma base de conhecimento para que ela consiga entender o que está acontecendo. Bem informada, ela vai conseguir usar esse conhecimento para fazer o que quiser”, diz Desterro. As aulas ficam disponíveis, gratuitamente, no canal “Finanças na Prática”, nome do grupo, no YouTube.
O primeiro encontro, no início de setembro, analisou a disputa entre Stone e Totvs pela Linx, discutindo, entre outros pontos, o papel do conselho de administração no imbróglio. Em outra ocasião, eles debateram a fusão entre Unidas e Localiza, analisando os termos da operação e suas etapas e resposta das ações. O IPO da Petz também foi tema de outra conversa. E com o passar das semanas, Desterro foi trazendo convidados para participar das aulas. E, também, criando um núcleo de apoio para cuidar do projeto — são cerca de 20 pessoas hoje mais diretamente envolvidas.
Sandra Calcado, responsável pela área de relações com investidores e ESG da Log-In Logística falou sobre a vida real após o IPO. Alexandre Amitay, sócio do Grupo Solum, comentou sobre ativos alternativos. Steven Assis, do Santander, discutiu com a turma sobre projeções macroeconômicas, eleições americanas e o Pix. Isabella Jerke, diretora financeira da L’Óreal, tratou do perfil do profissional de finanças. Rodrigo Coutinho, do Mercado Livre, falou sobre a Ciência de Dados.
“O projeto do Marcelo [Desterro], que hoje é a união de diversas mentes, tem o propósito de mudar o mundo através da educação. Ele coloca na mesma ‘sala de aprendizado’ profissionais super seniores lado a lado com estudantes, estagiários e recém-formados. Nunca vi, de forma estruturada, um grupo tão coeso com a filosofia altruísta de compartilhar o aprendizado sem o menor interesse comercial”, diz Sandra, da Log-In.
Com o tempo, a adesão foi crescendo, muito a partir do boca a boca e do compartilhamento em redes sociais. As primeiras aulas foram acompanhadas ao vivo por entre 15 e 20 pessoas. E agora o “Finanças na Prática” é seguido por cerca de 1,5 mil pessoas no YouTube, e mantém um grupo do Telegram com mais de 700 pessoas — lá o debate continua depois das aulas. É possível tirar dúvidas, trocar informações e manter contato diário com os executivos que fizeram as apresentações. Sandra diz que eles estão também motivados com essa oportunidade de interação de igual para igual com os alunos.
Nos encontros dominicais, Desterro foi percebendo que faltava a alguns participantes um pouco da teoria e compreensão de conceitos. Para dar a eles mais bagagem para acompanhar os temas, abriu cursos semanais de “valuation”, ou avaliação de empresas, terças e quintas, às 6h30. Desde a semana passada, ele foi além e passou a colocar no ar aulas diárias, cada dia com um tema e um convidado: tesouraria, ESG, ciência de dados, mercado de capitais. “Elas ficam disponíveis para quem quiser estudar na hora que puder”, diz.
Enrico Rodrigues, com passagens pela Royal IHC, Souza Cruz, Invepar, IBM e Sistac, que está à frente das aulas de tesouraria, também destaca a riqueza de unir executivos seniores com estudantes. “Há muitos cursos de finanças por aí, mas nenhum com essa troca e interação, que é o propósito do projeto. O que acaba sendo transmitido nessas conversas nenhum desses jovens vão aprender somente nos livros. Estamos todos dividindo experiências e mostrando como é o dia a dia de cada um”, afirma Rodrigues, acrescentando que, como as aulas são bem cedo, só entra ali ao vivo quem está “a fim de estudar mesmo”. Também na linha de frente do projeto, ele conta que há hoje no grupo pessoas de 11 Estados e 30% delas estão fora do eixo Rio-São Paulo.
Para Desterro, a pandemia e essas ferramentas virtuais acabaram abrindo a possibilidade de levar o conteúdo para todo o Brasil. “Tem um aluno que assiste do ônibus, e até já entrou um estudante de Angola.” Nos tempos de Coppead , Desterro liderou um grupo de mestrandos que dava aulas de reforço e ajudava os professores de uma escola municipal ao lado, um projeto que existe ainda hoje, chamado “Compartilhando”.
Fonte: Valor Invest