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A pandemia e a importância da educação financeira

Terça, 24 Novembro 2020

Já se passaram onze meses desde o primeiro caso de Covid, nove meses desde a declaração pela OMS de que vivenciamos uma pandemia e não há clareza sobre quando se restabelecerá um ambiente de maior normalidade.

Muitas reflexões sobre as lições que ficarão deste período têm se apresentado. No livro “Ten Lessons for a post pandemic world” (Dez lições para um mundo pós-pandemia) fica evidenciada a concentração de ideias sobre como os governos e a sociedade podem se ajustar para melhor prevenção e reação a futuros eventos adversos. Alerta-se que a maior frequência recente de vírus fortes e com difusão mundial (SARS, MERS, Covid, entre outros) não é um acaso e que eventos similares podem voltar a ocorrer. Isto se daria por vários fatores: proximidade de grandes centros urbanos com habitats de animais, consumo crescente de animais in natura, seleção natural dos vírus, que se adaptam à seleção genética dos animais criados para comercialização, além da alta conexão da economia global, com enormes fluxos de bens e pessoas entre países.

Desta constatação, emergem recomendações de como governos e instituições multilaterais poderiam agir para mitigar riscos futuros, como: governos com mais quadros qualificados e multidisciplinares para políticas preventivas e reativas eficazes; estruturas hospitalares mais robustas; maior produção local e estoques de itens estratégicos de saúde; maior coordenação global, inclusive entre cientistas, para cooperação em momentos de crises de escala mundial.

Mas há um aprendizado que não depende de governos e instituições multilaterais e que contribuiria muito para um menor grau de sofrimentos em eventos futuros adversos. Algo que está às mãos de cada indivíduo, a educação financeira, com formação de poupança precaucional para eventos imprevistos.

Para dar a dimensão da importância de se avançar na educação financeira para futuras crises, em pesquisa feita pouco antes da pandemia, pela Anbima e Folha de São Paulo, apenas 38% das pessoas das classes A, B e C constituíram algum tipo de reserva em 2019. Se, por simplificação, considerar-se que as pessoas das classes D e E não constituíram reserva, chega-se a 70% da população que adentrou o período da pandemia sem condição de constituir nenhuma reserva financeira.

Mais do que isso, 40% das pessoas que constituíram reserva o fizeram para consumo futuro (bens duráveis, imóveis, reforma de casa, viagem e estudos), reduzindo para apenas 18% o contingente de pessoas que constituíram reservas para poupança permanente. Este é o pano de fundo simplificado da vulnerabilidade financeira pré-pandemia no Brasil. Menos de uma em cada cinco pessoas constituiu reservas para poupança no período anterior à eclosão da crise.

Adicione-se a esse quadro a redução de 12 milhões de ocupados nos últimos 12 meses, sendo que dois em cada três empregos perdidos são de trabalhadores sem carteira assinada, domésticos ou por conta própria, posições de menor qualificação e salários.

A extensão final dos danos econômicos e sociais da Covid ainda será conhecida, pois estão em curso vultosos programas para mitigação dos efeitos da pandemia, com auxílio emergencial a milhões de brasileiros, subsídios tributários para empresas não demitirem, postergação de pagamento de crédito e muitos acordos privados bilaterais para suavizar estes impactos.

Entretanto, parece haver um sinal positivo desta crise toda, apesar da alta do desemprego e da baixa poupança precaucional no início da crise: os efeitos sobre a inadimplência das famílias, até aqui, são menos intensos do que se poderia prever. Após deterioração nos primeiros meses da crise, estes números já começaram a arrefecer. As famílias endividadas eram 64,7% do total em outubro de 2019, subiram a 67,5% em agosto de 2020 e cederam para em 66,5% agora em outubro. Parte desta surpresa positiva pode estar associada a uma postura financeira mais consciente da população em meio à pandemia.

Há sinais difusos desta postura financeira mais prudente, com maior disciplina orçamentária neste período de severa crise, o que pode ser alvissareiro para o futuro. No período de pandemia, por exemplo, houve um aumento do interesse da população pelo tema “investimentos”, que é parte integrante da educação financeira. O número de pessoas físicas com cadastro na B3 chegou a 3,1 milhões de CPFs, com crescimento de 87% sobre 2019. Os tickets médios são decrescentes (R$ 121 mil, frente a R$ 267 mil em 2017), o que aponta para acesso mais difuso entre as diferentes classes de renda. A participação das mulheres tem aumentado consistentemente, chegando a 26% do total de CPFs cadastrados na B3. Os números ainda são modestos para uma população de mais de 210 milhões de habitantes, mas a pandemia pode ter remodelado alguns comportamentos humanos e, quem sabe, não venha a ser o despertar da cultura da educação financeira e dos investimentos no Brasil.

A melhor educação financeira é crucial para minimizar os efeitos negativos de novos eventos adversos. Educar vem do latim educare, que é uma composição de ex (para fora) e ducere (conduzir) e está associado à ideia de preparar as pessoas para o mundo e para viver em sociedade. Educação financeira, portanto, nada mais é do que prover as ferramentas para que cada indivíduo saiba lidar financeiramente com as dificuldades e surpresas que se apresentarão.

Como em qualquer processo de educação, não se inicia o aprendizado pelos temas mais complexos e áridos. Muita gente tem se aproveitado do interesse crescente pelo tema para vender facilidades. Entretanto, uma vida financeira saudável está muito mais associada a hábitos contínuos de disciplina do que a técnicas de enriquecimento repentino. Atitudes recorrentes e disciplinadas são poderosas para constituição de uma condição financeira favorável, tais como:

Mapeamento regular de orçamento: de onde vem suas receitas, para onde fluem seus gastos (recorrentes e eventuais), comparação de preços nas compras de maior valor, revisão de gastos supérfluos e renegociação de dívidas com linhas de crédito mais baratas.

Destinação regular de um percentual fixo de seus ganhos para uma conta de “segurança financeira”, apartada da conta de movimentação corriqueira. Destinar, de preferência, no início do mês, para que este dinheiro não sofra com a tentação do consumo imediato. Usar parcela de ganhos extraordinários (13º salário, rescisão contratual) para a reserva também ajuda.

Avaliação criteriosa e recorrente de onde investir os recursos de sua reserva. Compreensão gradual das diferentes alternativas de investimentos e seus riscos (poupança, títulos públicos, dívidas de empresas, fundos de previdência, fundos de investimentos, ações de empresas), com adequação ao perfil de cada indivíduo e ao seu contexto de ciclo de vida.

Esse entendimento completo do quebra-cabeça financeiro de cada indivíduo, ou família, é que possibilitará a consistência entre objetivos e escolhas de alocação financeira ao longo da vida.

Por fim, vale ressaltar que parte da limitada cultura de poupança e investimentos está associada a características econômicas que estão sendo alteradas no Brasil, o que torna ainda mais relevante esta mudança comportamental, tais como: ambiente de inflação alta, que inibia a formação de poupança; aposentadorias pelo INSS que geravam benefícios similares aos salários na ativa, o que mudará com as novas regras da previdência; ofertas de investimentos restritas, agora amplificadas pelo ambiente digital; além dos juros altos, que inibiam o surgimento de mais alternativas de produtos financeiros competitivos.

Algumas dessas mudanças estruturais ficam mais evidenciadas em um momento de dificuldade extrema, como tem sido a pandemia. Talvez se possa extrair, do momento de dificuldade, esta mudança de atitude, com ações cotidianas e regulares que levem à constituição de sua reserva financeira própria.

O benefício desta reserva financeira própria, líquida e satisfatória, independentemente se ela será utilizada em situação de emergência ou não, foi demonstrado em estudo de economia comportamental de 2016. Em “How Your Bank Balance Buys Happiness: The Importance of “Cash on Hand” to Life Satisfaction” (Como seu saldo em conta compra felicidade: a importância do dinheiro na mão para satisfação com a vida), os autores encontraram fortes evidências, controlado por outros fatores, de que a disponibilidade de reserva financeira imediata é mais importante para a satisfação do que ter altos salários, um bom patrimônio em ativos ilíquidos ou não ter dívidas. É esta reserva disponível que permite que se deite a cabeça no travesseiro com tranquilidade e que gera satisfação.

Neste ano atípico, vale extrair lições que nos tornem pessoas melhores e mais felizes no futuro. Aprimorar a educação financeira pode ser um dos bons legados desta experiência inusitada de 2020.

 

Fonte: Valor Investe