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Investir em ofertas de ações pode ser cilada com boom de desistências de IPOs

Sexta, 13 Novembro 2020

Em um ano tão anormal como 2020, o Brasil vive um boom de estreias na bolsa de valores — mas de desistências também. No ano, até agora, 24 companhias fizeram ofertas públicas iniciais (IPOs, na sigla em inglês) de ações, mas 16 empresas cancelaram sua abertura de capital, segundo a lista oficial. Ou seja, a cada três empresas que estrearam na bolsa, duas desistiram, longe de ser um ponto fora da curva, uma exceção.

Se fazer IPO é um dos atestados de sucesso de uma companhia, desistir é uma prova de fracasso, sinal de que a empresa não é atraente para investidores? E em meio a esse cenário, significa que investir em IPO agora é cilada para pessoas físicas? Sim, se as companhias não forem muito bem selecionadas, segundo analistas.

As últimas empresas que cancelaram suas aberturas de capital foram a BRZ Empreendimentos e Construções e a Lojas Le Biscuit. Há outros cancelamentos que já foram noticiados, mas que também ainda não constam como “desistência” no sistema da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), além de suspensões temporárias. Ou seja, o número de desistências pode ser ainda maior.

Depois de experimentar um período de seca de estreias na bolsa, o Brasil vive uma avalanche de IPOs por algumas razões macroeconômicas. O volume só foi maior em 2006 e 2007, quando o país se beneficiava do boom de commodities e crescia 5% ao ano.

Há uma expectativa de recuperação do crescimento da economia nos próximos anos e a taxa básica de juros, a Selic, na mínima histórica tem levado pequenos investidores para a bolsa, em busca de retorno.

Só que esse número maior de potenciais compradores no mercado não significa que todas as companhias conseguem vender suas ações pelos preços desejados. No início do ano, as empresas esperavam que haveria uma demanda muito maior de investidores. Só que aí veio a pandemia e a impossibilidade de fazer planos, o que contribuiu para que companhias cancelassem suas estreias na bolsa.

Depois, a bolsa começou a subir rapidamente e algumas empresas resolveram correr com sua abertura de capital para aproveitar essa janela de oportunidade. Mas a 2ª onda de covid-19 nos Estados Unidos e na Europa e o risco maior das contas públicas do Brasil ficarem mais longe das metas novamente gerou volatilidade e assustou compradores de ações, tanto de companhias já listadas quanto de novatas.

Investidores passaram a querer preços menores, muitas vezes abaixo da faixa de preço estabelecida pelas empresas, para participar dos IPOs. “As vendedoras preferem segurar as ofertas para um período mais estável e emitir ações por um preço maior. As companhias não vão na bolsa para dar barganhas para investidores”, afirma Rodrigo Wainberg, analista da Suno Research.

A explicação para as desistências é simples. Se tem demanda, as empresas estreiam na bolsa. Se não tem, cancelam ou suspendem temporariamente a abertura de capital.

As desistências são um sinal de que investidores estão mais seletivos e que há limite. Um aceno de que não dá para qualquer empresa ofertar ações por qualquer preço.
Para as companhias, o mercado está ruim, mas nem todas empresas são ruins, segundo analistas. “Quem tem um modelo de negócios atrativo não tem por que lançar o IPO em um momento ruim do mercado. Eu entendo a decisão desses executivos”, diz Wainberg.

Empresas “bizarras”

Analisando companhia por companhia, o buraco é mais embaixo. Há, sim, empresas ruins, de acordo com analistas. Eles dizem que, no período de euforia, quando o mercado viu a bolsa subir após o choque inicial da pandemia, até companhias que não estavam tão bem preparadas, algumas até em dificuldades financeiras, registraram seus IPOs.

“Começou a chegar muita empresa bizarra, com modelo de negócio único, que você não consegue ter noção de como avaliar. São projetos que, se derem certo vai ser legal, mas quando você vê, são uma bagunça, os números não fazem sentido”, afirma Carlos Herrera, estrategista-chefe da Condor Insider.

Segundo Herrera, algumas companhias nem sequer publicaram seus últimos balanços, e outras publicaram seus prospectos na CVM com erros. A dificuldade de analisar as empresas é tanta que a Condor Insider deixou de publicar relatórios sobre as ofertas para pequenos investidores. “Perdíamos tempo e sabíamos que, se o IPO saísse, a chance era grande de ser a múltiplos caros”, diz o analista.

Na avaliação de Herrera, as companhias não são culpadas de ir atrás do investidor quando existe janela e têm direito de pedir o dinheiro, mas o investidor também tem o direito de negar. Quem poderia agir diferente, na visão do analista, é a CVM.

“Os prospectos são mal feitos, as empresas não fazem reuniões públicas com jornalistas e analistas independentes e não se comunicam com o mercado, e a CVM não cobra”, afirma Herrera. Ele também critica o "lock-up", uma cláusula contratual que estabelece um período no qual os investidores não podem vender as ações de uma empresa, sob pena de multa, aplicada aos investidores de varejo em algumas ofertas.

Pequeno investidor é “intruso”

Analistas apontam que toda a estrutura dos IPOs é feita para investidores institucionais e que faltam informações para pequenos investidores, o que contribui para a baixa demanda nas ofertas.

“A pessoa física entra de intrusa em um mundo que não é feito para ela”, afirma Eduardo Guimarães, especialista em ações da Levante.

Ele destaca que a dificuldade começa no prospecto, complexo para investidores de varejo. “Os investidores institucionais têm mais acesso à informação. Não custava nada as companhias fazerem uma live para responder perguntas”, diz Guimarães.

Outro entrave, segundo o analista, é o valor mínimo para entrar em um IPO, de R$ 3 mil para investidores de varejo. Reservar ações na corretora para participar da oferta também não é um processo usual, diz Guimarães. E nas ofertas com lock-up, pequenos investidores ainda ficam sem liquidez por um período após a estreia da companhia na bolsa.

Samuel Torres, analista-chefe da Capital Research, sugere que a CVM aumente o número de informações mínimas exigidas das companhias e crie algum tipo de estrutura diferente dentro do prospecto para ajudar a pessoa física a estudar as empresas. “Não é fácil ler um prospecto e encontrar as informações relevantes. São documentos complexos, não são feitos pensando na usabilidade do usuário final”, afirma Torres.

O que diz a CVM

A CVM diz que está em análise a revisão da regulação das ofertas públicas e que uma das suas intenções é melhorar as informações prestadas ao investidor de varejo.

"Dados coletados pela CVM corroboram a visão de que existem algumas barreiras informacionais para o maior acesso desse tipo de investidor a ofertas públicas, afirma a CVM, em nota.

Com a revisão da regulação, a entidade também pretende tornar o regime das ofertas públicas "otimizado, simplificado e mais ágil" e consolidar, em um único normativo, as regras das Instruções 400 e 476. Segundo a reguladora, alguns aprimoramentos já estão em vigor em caráter experimental, como a possibilidade das companhias apresentarem o pedido de registro confidencial e a dispensa da necessidade de aprovação de material publicitário.

Em relação ao lock up, a CVM diz que é uma inovação recentemente introduzida pelos intermediários e ofertantes, que "não identificou vedação normativa" e que algumas orientações ao mercado já foram prestadas.

A entidade também esclarece que a decisão de abrir ou não capital cabe, exclusivamente, às empresas. "Como órgão regulador do mercado de capitais no Brasil, compete à CVM criar condições e zelar por um ambiente regulatório pleno e de bom funcionamento. Adicionalmente, também está na esfera de competência desta autarquia analisar, tempestivamente e de acordo com os normativos em vigor, pedidos de ofertas que chegam à instituição", afirma, em nota.

IPO, então, é cilada?

Investir em IPO é cilada se o investidor não entender a fundo o que está comprando, segundo analistas. Na avaliação deles, em geral, é mais seguro comprar ações de empresas já listadas, porque as companhias tendem a ter mais histórico de números e a se comunicar melhor com o mercado.

“É bom ter novos setores na carteira, bate no mantra da diversificação, mas IPO tem que ser olhado com parcimônia. Se você tem 30% da carteira em ações, reserve 5% ou menos para as ofertas”, sugere Guimarães, da Levante.

Mas há boas (e raras) oportunidades nas ofertas para quem estiver disposto a estudá-las com atenção. Um exemplo citado pelos analistas é a rede de pet shops Petz, empresa de um segmento que não existia na bolsa ainda, fora do radar da maioria, e que estreou com alta demanda pelas ações.

Empresas que estreiam na bolsa são como "small caps", termo em inglês usado para se referir a ações de empresas consideradas menores quando comparadas às gigantes da bolsa. Por estarem ingressando no mercado, essas companhias podem ter um futuro promissor pela frente, com alto potencial de crescimento e bom retorno para os acionistas.

Muitas delas são inovadoras ou atuam em setores ainda não consolidados. E a vantagem de investir no IPO é a chance de conseguir um preço ainda mais barato pela ação.

Por outro, pode ser uma aventura de dar frio na barriga. Isso porque são ações que apresentam maior risco e volatilidade, além de terem menor volume de negociações na bolsa, ou seja, pode ser difícil vender os papéis. Isso faz com que essas ações sejam mais indicadas para quem pode deixar o dinheiro investido em longo prazo.

Da mesma forma que podem ter um ótimo crescimento, isso pode simplesmente não acontecer, e o investidor pode perder muito dinheiro.

Analistas aconselham só participar de IPOs de companhias de setores totalmente novos na bolsa, ou cujas ações estão mais baratas do que as das concorrentes já listadas. É preciso conhecer as perspectivas para o setor, como a empresa ganha dinheiro, quais são as suas vantagens competitivas e quais são os riscos para o seu negócio. Para saber se o papel está barato na oferta, é preciso analisar múltiplos como o preço sobre o lucro.

“Também considero importante o investidor analisar quem está vendendo ações, se a maior parte do dinheiro está indo para o caixa da empresa ou para os acionistas atuais e o que a empresa vai fazer com o dinheiro, se vai usar para pagar dívida ou para investir e crescer”, sugere Torres, da Capital Research. Em geral, o mercado desconfia quando os acionistas colocam à venda toda ou quase toda a participação.

Nada disso é simples. Os analistas levam dias para avaliar se vale a pena participar do IPO de uma empresa. Casas de análises como a Levante, a Suno Research e a Eleven Financial produzem relatórios pagos com essas avaliações para pequenos investidores.

Para fazer a reserva de ações de uma companhia, basta avisar a corretora sobre quantos papéis o investidor gostaria de comprar na oferta e por qual preço. Nas ofertas de ações, as empresas e os bancos coordenadores testam uma faixa de preço. Se a venda aconteceu no valor mais alto, significa que a demanda pelos papéis foi grande. Já, se a venda aconteceu no valor mais baixo, significa que a demanda pelos papéis foi pequena.

E se a companhia desiste do IPO, é sinal de que a demanda foi menor ainda, e o dinheiro volta para o bolso do investidor que perdeu tempo analisando a oferta. Aí, cabe decidir se vale encarar todo o risco de novo ou se é mais seguro comprar ação de uma empresa já listada e fim de papo.

 

Fonte: Valor Investe