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Brasileiros ligam finanças pessoais a sentimentos ruins e perpetuam tabu sobre dinheiro

Terça, 10 Novembro 2020

Nunca se falou tanto sobre dinheiro, finanças pessoais e investimentos como atualmente. Com a ajuda da internet, conectando qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo a outras, diversos conteúdos são disseminados rapidamente e a educação financeira é um deles. Nos últimos anos, houve uma explosão de youtubers, sites jornalísticos (Valor Investe "nasceu" em maio de 2019) e cursos sobre o tema. Mas o brasileiro segue distante de quebrar o tabu - construído ao longo de décadas - com o assunto dinheiro.

A raiz do problema está muito mais nas questões psicológicas que os brasileiros têm com suas finanças do que com as informações disponíveis sobre o assunto. A constatação é de um amplo estudo do Itaú Unibanco, em parceria com o Datafolha, sobre a relação emocional do brasileiro com dinheiro, e publicado pela primeira vez pelo Valor Investe.

Foram ouvidos 2.071 brasileiros, sendo 49% homens e 51% mulheres das classes A, B, C, D e E, com idades entre 16 e 65 anos em todo o Brasil pelo Datafolha. Desses, metade (49%) evita até mesmo pensar em dinheiro para não ficar triste.

Como o que os olhos não veem, o coração não sente, diz o ditado popular, 46% dos brasileiros preferem nem olhar para o próprio dinheiro porque acredita estar fazendo algo errado em termos financeiros.

"Eu tenho medo de colocar na ponta do lápis quanto eu devo, quanto que eu tenho de compra parcelada, o que entra, o que sai, porque você fica deprimido. Então eu prefiro fingir não saber. É como a questão da mortadela, da salsicha: você não procura saber como que é feito, para não sofrer", disse um morador de São Paulo com 31 anos em uma das rodadas de entrevistas feitas pelo Itaú em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre com 140 pessoas. A identidade dos entrevistados foi mantida sob sigilo.

Luciana Nicola, superintendente de relações institucionais, sustentabilidade e empreendedorismo do Itaú Unibanco, explica que uma das principais conclusões do estudo foi perceber que disponibilizar conteúdo sobre finanças aos clientes não era suficiente.

"Temos que buscar transformação. É uma terapia. Essa relação com o dinheiro é mais psicológica do que qualquer outra coisa. Hoje finanças pessoais é muito atrelada a sentimentos ruins e coisas que não necessariamente a pessoa tem a mente aberta para falar", diz Nicola.

Ao mesmo tempo em que brasileiros veem suas finanças como "salsichas" (nesse caso talvez seja melhor mesmo não saber o que tem lá), metade (50%) dos entrevistados considera que falar de dinheiro é imprescindível, mas aqui entram apenas conversas corriqueiras e sem profundidade. Na hora de falar de forma séria sobre o próprio dinheiro, o brasileiro, em geral dá aquela desconversada ou fica completamente sem jeito. Tanto que 60% dos brasileiros nunca falam quanto ganham.

Seja um valor considerado alto frente à média geral ou baixo, o assunto é quase um segredo de estado. "Eu nunca falo quanto ganho. Se você ganha 10, tem que falar que ganha 5. O pessoal no meu trabalho até acha que eu ganho mais do que ganho, mas eu não conto, o que gera ainda mais desconforto. Acho algo muito pessoal”, afirma uma mulher de 32 anos, em rodada de entrevistas em São Paulo.

Para Nicola, todo esse receio dos brasileiros vem do medo do julgamento. "Seja muito ou seja pouco, nunca achamos que devemos falar sobre isso", diz.

O tabu dos brasileiros em geral com o dinheiro é tão grande que a discussão vai além de posses, do tamanho da conta do cartão de crédito ou do que tem no carrinho do supermercado. Para boa parte dos pesquisados, o dinheiro (sua escassez ou abundância) pode moldar/mudar o caráter, como sugere um homem de 27 anos, em São Paulo, ao afirmar que "o dinheiro corrompe a família, as pessoas, é um divisor de águas".

Diante disso, o estudo buscou em quatro pilares - individual, familiar, social e cultural - entender como se deu a construção de todo esse tabu com o dinheiro e as formas de romper essa barreira para ampliar o entendimento do brasileiro sobre o tema e melhorar sua vida financeira.

Cultural

A pesquisa do Itaú ressalta que, de forma geral, o Brasil nunca soube lidar bem com suas próprias riquezas. "Sempre manteve suas finanças ‘em segredo’, sem transparência e concentrada nas mãos de poucos. Um país que sempre teve abundância de recursos, como ouro, pau brasil, pré-sal, fauna, agricultura, mata atlântica. Mas que, paradoxalmente, sempre viveu em crise", resume o estudo.

Sempre viveu em crise, mas em diversos momentos conseguiu se recuperar "naturalmente", como se as coisas se resolvessem por si. O reflexo disso é que mesmo em 2020, em meio a uma crise global sem precedentes trazida pela pandemia de covid-19, 81% dos brasileiros acreditam que a sua situação financeira irá melhorar nos próximos 5 anos. Sem dizer exatamente como ou porquê.

O estudo, que teve também a colaboração de especialistas em finanças na análise dos dados, aponta que o brasileiro se acostumou ao fato de que depois de uma crise vem um período de prosperidade.

Assim, no âmbito cultural, o tabu do dinheiro nasce na crença coletiva de que não é necessário levar o tema a sério. O estudo aponta que o brasileiro não costuma falar sobre dinheiro porque estamos em um país que tradicionalmente não sabe lidar com seus recursos naturais, os altos e baixos nas finanças são tidos como “normais” e o Brasil é o eterno otimista e acredita que tudo dará certo no futuro, independentemente do que está sendo feito hoje.

Social

A dimensão social também tem papel importante no tabu dos brasileiros com o dinheiro. Uma questão bastante enraizada na sociedade é de que lidar com dinheiro é algo que exige conhecimento técnico, além de já ter muita “bufunfa” (gíria velha, eu sei) guardada.

“Investimento é coisa de empresário”, resume o sentimento do brasileiro em geral uma mulher de 23 anos entrevistada em Recife.

Os brasileiros também não costumam acreditar em seu potencial de cuidar de suas finanças, além de achar isso complicado. Quase todos os entrevistados (97%) disseram ter dificuldade em lidar com o próprio dinheiro.

“Sou uma desgraça para guardar dinheiro, sempre que sobra eu gasto”, confessa um homem de 23 anos entrevistado em São Paulo.

A declaração dá uma pista da baixa autoestima dos brasileiros quando o assunto é dinheiro. Tanto que 6,4 foi a nota média que os entrevistados se deram ao avaliarem seu nível de satisfação em relação à forma como lidam com dinheiro.

O estudo aponta que essa percepção negativa nasce de um imaginário coletivo de que o único jeito de se sair bem nas finanças é fazer sacrifícios, não gastar e acumular o máximo possível. Se privar de coisas bacanas hoje para quem sabe, um dia, talvez, “chegar lá”, não é muito atrativo quando intuitivamente o ser humano é mais imediatista que isso.

Outra questão é que a vida não é tão linear quanto uma tabela de excel e imprevistos surgem. Até por isso 93% dos brasileiros afirmam ter passado por alguma situação que mudou sua forma de enxergar a vida. Dessa parcela, 51% disseram que a situação os levou a modificar sua forma de se relacionar com dinheiro. Os principais motivos foram doença ou morte na família (20%), um filho (11%), a perda de um emprego (9%), ir morar sozinho (8%) e casamento (8%).

Familiar

Se a sociedade afeta a forma do brasileiro lidar com as finanças, os laços familiares são ainda mais poderosos nessa influência.

O lado bom é que avós e pais que cuidaram bem de seu dinheiro passam esse hábito para frente, mas não é o cenário geral e os mais jovens tendem a reproduzir a baixa autoestima financeira das gerações anteriores. Quase todos jovens brasileiros (98%) afirmam ter dificuldade em lidar com o seu dinheiro.

Quem consegue quebrar esse círculo vicioso acaba tendo que incluir em suas finanças uma ajuda a familiares com menos renda e organização. A pesquisa do Itaú/Datafolha mostra que 41% dos brasileiros ajudam os pais financeiramente. Isso é mais comum nas classes A/B (44%), do que na C (39%) e D/E (40%).

“Quando comecei a estabilizar a parte dos gastos que eu tinha comigo na época, que não eram muitos, eu comecei a ajudar meus pais, o que sobrava de grana eu dava para os meus pais", conta um entrevistado em São Paulo com mais de 31 anos.

Quem consegue falar seriamente de dinheiro com a família tem mais chances de romper com o tabu herdado. “Na minha casa, eu e meus irmãos, a gente se ajuda bastante. Conversamos muito sobre como controlar nossos gastos para melhorar nossa situação (…). E eu falo com meu irmão: tira esse dinheiro da poupança!”, diz um entrevistado no Rio de Janeiro em uma rodada de conversa com pessoas de 18 a 30 anos.

Individual

A esfera individual é a última fronteira do tabu do brasileiro com o dinheiro. Calado sobre suas finanças, a ausência de conversas francas sobre o tema abre espaço para uma série de crenças limitantes.

“Tenho medo de ter muito dinheiro porque vejo muita gente com dinheiro que não é feliz. Acho que ele traz inveja e muita cobiça para o nosso redor", diz uma entrevistada de 36 anos no Rio de Janeiro.

83% dos brasileiros dizem conhecer pessoas que ganharam muito dinheiro e perderam seus valores morais e éticos e 86% dos brasileiros acreditam que o dinheiro pode acabar com amizades, famílias e casamentos.

“Quem tem dinheiro tem que carregar um certo karma. O ruim é isso, a perdição que ele traz, a inveja”, disse um entrevistado de 65 anos no Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo em que ganhar mais dinheiro do que a média atrai "inveja", segundo 90% dos brasileiros entrevistados, é preciso aparentar estar minimamente bem de bolso, já que 89% dos brasileiros concordam com a frase: "todo mundo diz que dinheiro não é tudo, mas se você aparecer mal vestido ou com um carro velho em frente aos amigos, todo mundo vai reparar".

“Os amigos e o meio em que você vive acabam criando esse padrão alto e quando você não tem é difícil conviver…”, diz um dos entrevistados em uma roda de conversa realizada em São Paulo com pessoas de mais de 31 anos.

Alcançar um determinado patamar financeiro e perdê-lo é a maior preocupação de 85% dos brasileiros, ao mesmo tempo em que 66% declararam preferir ter mais tempo com a família e com os filhos, ainda que para isso tenha que abrir mão de parte da renda.

Vivendo o hoje

Uma trava emocional importante observada no estudo é o receio de deixar de gastar hoje para um amanhã tão incerto. Assim, 62% dos brasileiros acreditam que quem controla demais o dinheiro não aproveita a vida.

“Não penso muito no futuro, vivo muito hoje. Sempre fui assim, hoje eu tenho, amanhã eu vou ter também. Se não tiver eu tenho que dar um jeito e eu vou dar um jeito”, disse uma mulher de 29 anos entrevistada no Rio de Janeiro.

77% dos brasileiros se sentem no direito de gastar seu dinheiro com as coisas que lhe dão prazer.

“Eu sou classe baixa, moro na periferia, mas compro roupa e bolsa de marca. (…) O que a classe média tem eu também posso ter. Vai demorar mais um pouco, mas se eu quiser também posso ter", diz uma jovem de 15 anos, entrevistada em São Paulo.

Claro que gastar dinheiro com si mesmo não é errado, mas preparar-se financeiramente para o futuro também é pensar em si - só que mais velho.

Nicola lembra que um terço dos brasileiros que pretendia fazer compras de presentes de Natal no ano passado tinham contas em atraso, em mais uma demonstração do imediatismo dos brasileiros ao lidar com o dinheiro. Não por acaso, 23% dos brasileiros vivem uma luta para superar as dívidas, segundo a pesquisa do Itaú.

Como sair desse círculo vicioso ensinar ao nosso cérebro que estamos fazendo uma troca, que é um mal-estar temporário com as contas para um futuro mais organizado?

Para Nicola é preciso fazer uma espécie de "terapia financeira", que deveria ter início ainda na educação básica das crianças e em uma linguagem que se aproxime da realidade das pessoas. Esse, inclusive, é o segredo do sucesso de youtubers de finanças.

Ganhar intimidade com o assunto ajudaria a reverter os sentimentos negativos em relação ao dinheiro e o estudo pode fornecer o conhecimento que os brasileiros sinalizaram sentir falta para tomar decisões mais acertadas sobre suas finanças.

Quem troca a vergonha e a culpa pela intimidade e conhecimento colhe os frutos. “Estou em uma situação que me sinto seguro. Eu tenho o meu carro que foi uma conquista que eu demorei muito. Agora eu estou para pegar um apartamento no final do ano também. As conquistas que a gente vai tendo vão fazendo você ficar muito feliz", diz um entrevistado de 31 anos, em São Paulo.

Essa "virada de chave", contudo, não é simples. “Às vezes o mental está falando: 'guarda!'; mas o sentimento é diferente. Precisa fazer sentido aqui [o coração] para depois fazer aqui [cabeça]. Isso que eu estou buscando aprender: é importante!”, conta um entrevistado de 31 anos em uma rodada de conversas em São Paulo.

O que o estudo sintetiza, no fim das contas, é que se não bastassem todos os obstáculos financeiros que os brasileiros enfrentam todos os dias, um dos maiores inimigos está dentro de si mesmo. E a resposta para "matar o monstro" também.

 

Fonte: Valor Investe