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Perdas se espalham em fundos DI em outubro

Quinta, 15 Outubro 2020

As perdas observadas no mês passado em fundos de renda fixa DI, considerados um dos portos mais seguros para as reservas de liquidez, continuaram nos primeiros dias de outubro. Ao ver carteiras conservadoras com resultados negativos, o risco é haver uma aceleração de resgates, o que obrigaria os gestores a se desfazer de papéis públicos pós-fixados num momento desfavorável de mercado.

Mas com a ação conjunta entre Banco Central (BC) e Tesouro, uma oferta mais casada com a demanda do mercado, títulos pós-fixados (Letras Financeiras do Tesouro ou Tesouro Selic) mais curtos e um limite para a rolagem de compromissadas, a expectativa é de que os prejuízos sejam aos poucos diluídos.

Levantamento feito pelo economista e colunista do Valor Investe, Marcelo d’Agosto, com base em dados da Morningstar, mostra que, de um conjunto de 180 fundos destinados ao varejo, com patrimônio de R$ 398 bilhões e cota divulgada nos primeiros dias de outubro, 166 (92%) estavam no vermelho. Em setembro, havia 99 carteiras (55%) nessa situação e, no mês anterior, só três.

Do fechamento de agosto para cá, os saques foram da ordem de R$ 24,3 bilhões nesse conjunto de fundos, sendo R$ 16,5 bilhões entre 28 de setembro e 9 de outubro. Pelo consolidado da Anbima, na primeira semana de outubro, os fundos de renda fixa tiveram resgates de quase R$ 20 bilhões.

Os papéis Tesouro Selic vêm sendo negociados com desconto, porque os investidores têm mostrado pouca disposição para assumir títulos públicos a taxas tão baixas nos leilões do Tesouro. A Selic a 2% ao ano é considerada hoje um retorno incompatível com o risco fiscal. Para financiar o governo com alguma gordura, gestores de recursos e tesourarias só topam comprar os papéis com deságio no preço — o que eleva o retorno futuro.

Na sexta-feira, contudo, o Tesouro anunciou que passaria a ofertar títulos pós com resgate em 2022, e não mais em 2023. Ao mesmo tempo, o BC informou que limitará em R$ 600 bilhões a rolagem de compromissadas que vencem no dia 29. Na terça, o BC anunciou a redução do prazo das operações.

Um recorte feito pela Itaú Asset Management com grandes fundos de renda fixa de longo prazo — de Itaú, Banco do Brasil, Santander, BTG Pactual, Bradesco, Caixa e XP — traz que a variação em relação ao CDI desse bloco em setembro foi de -53% do referencial a +55%, ou seja nenhum colou no já raquítico CDI. Essas carteiras reuniam cerca de R$ 76 bilhões e apresentaram saques de R$ 10,9 bilhões no mês passado, conforme a Morningstar.

Em relatório a clientes, a gestora expõe que “se o Tesouro passasse a emitir LFTs com o prêmio demandado pelo mercado, o ajuste na marcação a mercado [a atualização dos preços nas carteiras com o valor do secundário] seria forte e rápido, machucando ainda mais a indústria de fundos conservadores, o que por sua vez poderia diminuir ainda mais a demanda por esses papéis”. Por outro lado, prossegue a análise da gestora, esse movimento abriria espaço para o Tesouro voltar a se financiar com títulos pós-fixados, retirando o risco do sistema como um todo.

No relatório, que foi elaborado antes das últimas ações de Tesouro e BC, a Itaú Asset disse que já tinha direcionado o foco para as LFTs de vencimentos mais curtos, e deixado o máximo de percentual possível em compromissadas, a fim de minimizar os impactos negativos da desvalorização dos títulos públicos nos seus fundos. Isso significa adquirir papéis da carteira do Banco Central (BC), com data de revenda e taxas já pactuadas. Não tem o chacoalhão do secundário.

“Em vez da compromissada, muitos gestores compraram LFT para cumprir o prazo médio [tributário] e se deram mal, teve muito resgate em fundos de varejo e de plataforma”, diz d’Agosto. “Os investidores saíram para CDB de banco, LCI e LCA [letras de crédito imobiliário e do agronegócio] e os gestores tiveram que vender ainda mais para pagar os resgates.”

Com os juros baixíssimos, já havia uma tendência de migração do investidor dos fundos de renda fixa conservadores para ativos mais arriscados, diz Samuel Oliveira, responsável pela área de análise de fundos da XP Investimentos. “É difícil expurgar o que é movimento por conta da perda recente e o que é mais estrutural, com a realocação dos recursos para algo com rentabilidade melhor”, afirma.

Embora as quedas nas cotas sejam indesejáveis, Oliveira diz que as oscilações são incomparáveis às vistas em fundos de crédito privado, de ações e multimercados no começo da pandemia, entre março e abril. Uma aceleração de saques traria pressão para os gestores, mas por ora ele não vê o mercado como disfuncional.

Conforme ilustra, numa amostra com 25 fundos com classificação Renda Fixa Simples pela Anbima, com patrimônio acima de R$ 50 milhões, as perdas de 1 de setembro até 8 de outubro oscilaram de 0,13% a 0,61%. Na média, o desempenho desse bloco foi negativo em 0,24%. Grosso modo, se num determinado período um investidor com R$ 10 mil num fundo com LFTs observasse uma desvalorização de 0,50% nas suas cotas, o impacto seria da ordem de R$ 50. “Não houve grandes estragos.”

Com o mau desempenho dos fundos em setembro, Cal Constantino, gestor da Santander Asset Management, temia que o investidor intensificasse os saques, forçando a venda de ativos. “A gente vem monitorando, mas fiquei cético em relação a isso porque ainda tem muita liquidez, muito dinheiro de curto prazo em caixa nos fundos. Acho exagerado o receio de uma onda de vendas”, afirma.

Num determinado nível de preço, as taxas começam a atrair compras, diz o gestor. “Há mais de uma década não se via LFT com prêmio tão elevado assim.” Para Constantino, a mudança de estratégia de Tesouro e BC trouxe certo alívio, mas ele atribui a reação ao retorno mais elevado dos ativos.

Lembranças de 2002

As movimentações recentes remetem a 2002, ano em que os reguladores instituíram a marcação a mercado dos ativos, ou seja, a atualização do valor dos papéis ao preço corrente, e não mais pela apropriação diária de juros (conhecida como marcação pela curva). Na ocasião, mesmo quem tinha carteiras ultraconservadoras sofreu grandes baques.

Tesoureiro de banco à época, o hoje gestor da Trópico Latin America Investments Sérgio Machado diz que ficou assustado com o que viu no mês passado. “Eu vivi 2002 da pior forma, foi o maior prejuízo que tomei na vida e estava certo, carregado de LFT para fazer frente à turbulência que viria num ano eleitoral.”

No quadro atual, ele acha que a área econômica ficou perto de perder o controle. “Na segunda passada [dia 5] havia vendedor a 135% da Selic, um ajuste gigantesco nas cotas na marcação. Chegou muito próximo de BC e Tesouro ficarem alheios ao que estava acontecendo.” A sinalização dada na sexta-feira, embora não traga nenhuma medida excepcional, ao seu ver, passou a mensagem de que, se necessário, outras operações parecidas podem sair da cartola.

Ele cita que, com as compromissadas lastreadas em LFTs longas, o BC vinha dando munição para o inimigo. “O título ficava livre para ‘shortear’ [apostar na desvalorização] em cima do BC”, diz Machado. Para o gestor, o que está errado é o nível de juros, que suscitou esse desinteresse pelas LFTs. “Mês a mês a demanda veio caindo e aumentando as compromissadas de médio e longo prazo, de 90 a 180 dias, com a mesma rentabilidade da LFT e sem risco de variação.”

Na sua avaliação, uma taxa mais adequada, que ajudaria a reequilibrar não só o mercado de juros, como também o câmbio, seria uma Selic na casa dos 4% ao ano. Os 2% atuais acabaram encarecendo o próprio custo de financiamento do Tesouro já que a curva de juros inteira ficou pressionada.

“Para tomar dinheiro longo, o governo já paga mais caro. Se analisar, não é só a taxa de inflação que está embutida, começa a ter risco além do fiscal, o risco de desarranjo.” Sinal disso, prossegue o gestor da Trópico, é que o mercado passou a exigir taxas na casa dos 7% para o FRA de cupom cambial (derivativo que sintetiza o juro em dólar) para 2025.

Outro argumento que demandaria juros mais altos, diz Machado, é que o último dado do IPCA, de 0,64%, se anualizado, projetaria uma inflação da ordem de 7%. Para o gestor, o mercado tem sido leniente porque a leitura atual não considera o represamento de ajustes, como alimentação fora de casa, mensalidades escolares ou planos de saúde que tiveram preços congelados na pandemia. “Os números do setor de serviços estão totalmente distorcidos.”

 

Fonte: Valor Investe