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Entender os prospectos dos IPOs é tarefa hercúlea para pessoa física

Segunda, 28 Setembro 2020

No documento de oferta de ações do e-commerce de vinhos Wine, é possível ter uma ideia dos números da companhia logo nas dez primeiras páginas — mas para saber o resultado líquido, de fato, só chegando na página 216.

Na produtora de biocombustível Granbio, os principais números estão a partir da folha 176 de um material de mais de 700 páginas, enquanto no documento da fabricante de produtos de limpeza MPR Participações o acionista vendedor na tranche secundária não está identificado.

O site de intermediação de vendas Enjoei não diz o que vai fazer com os recursos que pretende levantar na operação primária e a 3R Petroleum detalha seus dados por ativos, mas entender o resultado financeiro consolidado demanda mais tempo.

Com dezenas de ofertas iniciais de ações (IPOs) em preparação, entender quem são as companhias e o que elas propõem para sua jornada como empresa aberta têm se tornado um desafio cada vez maior para os investidores.

Além das conversas com analistas e de relatórios que precedem a estreia em bolsa, o principal material para as pessoas físicas são os documentos da oferta que as companhias disponibilizam no site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Trata-se de um calhamaço de centenas de páginas e muitas informações técnicas, mas é a base de todo o potencial e de todo o risco que o investidor está comprando.

Esse documento vai sendo atualizado conforme o andamento da oferta. No caso das companhias citadas acima, o material já disponível para investidores na CVM é ainda uma minuta de prospecto preliminar — quando for atualizado e virar de fato prospecto preliminar, abrir informações como destinação de recursos e acionista vendedor torna-se obrigatório.

A diferença entre a minuta e o prospecto é a fase da oferta: na minuta, a CVM ainda está analisando a operação e pode pedir alterações; do lado da companhia e dos bancos coordenadores, ainda não é possível receber pedidos de reserva de ações.

É nas páginas iniciais de seu material de oferta que a companhia resume o que quer destacar. Por isso, elas costumam trazer os melhores números e promessas — e é nessas páginas iniciais que a maioria dos investidores chega. É no sumário, por exemplo, que algumas companhias têm optado por incluir uma carta do fundador ou a história pessoal e profissional do empreendedor por trás daquela empresa, como fez a Havan.

A CVM determina quais dados são fundamentais nesses documentos, mas onde e com que destaque é escolha das empresas. “Se é uma companhia mais nova e em crescimento, talvez o resultado líquido, por exemplo, não seja o indicador mais importante a ressaltar, mas sim seu ritmo de vendas ou geração de caixa”, justifica uma fonte.

Esse executivo cita os casos de Wine e outras companhias de tecnologia registradas, como a Enjoei, Housi e Méliuz, como um novo desafio de leitura dos números para o investidor nacional — menos acostumado a esse tipo de oferta de startups. Em algumas dessas companhias, um outro indicador aparece entre os principais, o chamado “churn rate”, métrica de clientes que cancelam os serviços ou assinaturas on-line.

Para alguns agentes de mercado, o varejo parece por vezes levar desvantagem de prazo no acesso a informações. “O investidor de varejo não tem reuniões com a empresa e com os bancos, mas os institucionais sim. Os gestores já ficam sabendo quais são as informações que preenchem as lacunas das minutas”, diz uma fonte.

Para técnicos da CVM e bancos coordenadores ouvidos pelo Valor, isso não configuraria uma assimetria de informações entre os investidores porque é feito na fase pré-venda. Ou seja, quando a companhia ainda está no chamado “investor education”, que são rodadas de apresentações sem fazer negócio. Os bancos argumentam ainda que essa ponte com o varejo é feita por meio de analistas, que participam de encontros iniciais e fazem suas avaliações.

“As atualizações nos documentos ao longo do processo da oferta são mais quantitativas, mas as informações qualitativas basicamente já constam desde o início. A diferença entre a minuta e o prospecto é que somente no segundo já há efetivamente esforço de venda e é aí que vai acontecer uma tomada de decisão do investidor”, diz Jean Arakawa, sócio do escritório Mattos Filho especializado em mercado de capitais.

Para ele, as companhias fornecem hoje um volume muito maior de informações do que faziam no passado, inclusive com a publicação de minutas detalhadas. “Além disso, antes de 2009, as companhias não tinham que publicar o formulário de referência, que é um documento bastante detalhado e extenso”, explica.

A disponibilização da minuta, por exemplo, é uma prerrogativa e não uma determinação da CVM. A autarquia entende que já dar visibilidade a informações de uma empresa e oferta permite maior escrutínio do investidor. Com um volume de ofertas fora da curva, comparável apenas a 2007, a CVM também tem reforçado a supervisão sobre o volume de informações que as companhias prestam e se incluem itens que não são cabíveis num prospecto preliminar.

Como analisar com lupa todos os detalhes fica mais difícil com um número grande de operações, em alguns casos a reguladora de mercado define a regra e a companhia que a cumpra — mesmo se não houver a supervisão da CVM no momento zero, ela já avisou como deveria ser, ou seja, a companhia pode ser punida por isso.

É o que acontece com o material publicitário de ofertas de ações. A CVM analisava previamente cada material antes de ser divulgado pela empresa. Hoje, as companhias não têm que submeter publicidade de antemão, mas têm normas a seguir.

 

Fonte: Valor Investe