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Por que o Tesouro Selic está caindo e levando os Fundos DI com ele? Entenda

Quarta, 23 Setembro 2020

Algo que não acontecia desde 2002 está sendo visto novamente no mercado brasileiro de investimentos: os papéis mais tradicionais e conservadores da praça estão dando dor de cabeça aos investidores. Estamos falando dos títulos do Tesouro do tipo Tesouro Selic, conhecidos também por LFTs, que remuneram os investidores com a taxa básica de juros (Selic) acumulada no período. Eles são os títulos mais recomendados por especialistas para compor a reserva de emergência, justamente porque tinham um histórico de não oscilar quase nada e não perder valor. Mas o que estamos vendo em setembro é algo bem diferente.

O título Tesouro Selic (LFT) que vence em janeiro de 2025, por exemplo, já acumulou prejuízo de 0,15% em setembro (até dia 21), considerando o valor do ativo. O papel que vence em 2023, -0,01% e só o que expira em 2021 está no campo positivo, ínfimos 0,10%. O IMA-S, índice calculado pela Anbima que funciona como um termômetro de desempenho do Tesouro Selic, acumula variação negativa de 0,5% no mês.

Parece pouco, mas não para esse tipo de título, que costuma navegar em águas calmas. A última vez que isso foi visto foi em 2002, quando os fundos foram obrigados a fazer a marcação a mercado, ou seja, a atualização do valor da carteira pelos preços nos quais os negócios com os ativos são de fato praticados. Esse 0,5% de perda também não é pouco quando consideramos que a Selic está em parcos 2% ao ano. Portanto, perdeu-se em menos de um mês o equivalente a 25% do ganho que a taxa de juros oferece num ano.

Lá em 2002, a maior parte dos fundos DI estava com cotas precificadas pela curva de juros, acima do preço efetivamente negociado no mercado. Em maio de 2002, o Banco Central, que na época fiscalizava os fundos de investimento, impôs que os preços de todos os ativos nas carteiras de investimento fossem “marcados a mercado”. Teve fundo que chegou a perder mais de 2% e até 3% de valor de uma vez. O susto provocou uma onda de resgates no setor que demorou meses para ser estancada.

Isso significa que não apenas os investidores que aplicaram seu dinheiro no Tesouro Selic estão vendo prejuízo em setembro, como também os que têm fundos de renda fixa na carteira, em especial os do tipo DI, que aplicam boa parte de seu patrimônio nesses papéis.

Segundo levantamento feito pelo economista e blogueiro do Valor Investe Marcelo d´Agosto mostra que, de um universo de 180 fundos da categoria renda fixa DI (com patrimônio de R$ 400 bilhões e 4,7 milhões de cotistas), conforme seleção do Guia Valor de Fundos de Investimento, 30% deles, que reúnem patrimônio de R$ 54 bilhões e 2,1 milhões de cotistas, já apresentam perda em setembro. Considerando que outras carteiras ainda podem ajustar os investimentos a valor de mercado, o número de fundos com “cota negativa” pode aumentar.

Entre eles estão fundos que só investem em títulos públicos, como o Porto Seguro Clássico FIC FI RF LP, que caiu 0,10%, o BTG Pactual Digital Tesouro Selic Simples (-0,07%) e o Votorantim BV Federal FIC FI RF Ref DI, que perde 0,05% - considerando o acumulado nos 17 primeiros dias do mês. Todos são distribuídos pelas principais plataformas de investimento.

“Obviamente, os clientes que colocam dinheiro em um fundo DI ou de renda fixa de baixa volatilidade ou liquidez diária quer uma coisa: preservação do capital. As variações que temos visto, ainda que pequenas e que não representem muito, é o tipo da surpresa que o cliente que coloca dinheiro nesses fundos não gosta de ver”, comenta Marcos De Callis, estrategista da Hieron Patrimônio Familiar e Investimento.
À primeira vista, uma rentabilidade de 0,05% ou 0,10% negativa pode parecer choramingo desnecessário – afinal, para quem tem R$ 50 mil, isso representa apenas R$ 25 ou R$ 50. Estamos mesmo em tempos de instabilidade, efeito da covid-19. Mas o fato de os títulos públicos mais conservadores estarem no vermelho representa muito mais, é um alerta de que algo está errado e o mercado está embutindo nos preços um aumento de risco.

“O risco sempre foi dimensionado e visto pelo mercado. Mas a situação se deteriorou muito rapidamente e isso está gerando incômodo. O mercado sempre teve esse receio; como em muito pouco tempo tivemos um aumento super rápido do endividamento público, isso levou ao pânico de curto prazo”, resume o economista VanDyck Silveira, CEO da Trevisan Escola de Negócios ao Valor Investe.

O que ele quer dizer? Qual risco está escancarado nesses prejuízos? Como fica o investidor, especialmente o pequeno neste movimento todo? Nos tópicos seguintes explicaremos a vocês essas questões.

Riscos

Você certamente já ouviu falar que não há retorno sem risco, não é? O problema é que muita gente sabe, mas ignora a máxima. Todo e qualquer tipo de investimento é sujeito a algum ou alguns riscos, seja de crédito (calote), mercado (oscilação de preços impactados por notícias, indicadores ou negociações), liquidez (dificuldade em negociar), operacional (falhas ou erros) e legal (fraudes)

O título Tesouro Selic também está sujeito a todos esses riscos em algum grau e o pano de fundo para o que estamos vendo está nos riscos de mercado, liquidez e de crédito. A expectativa dos economistas ouvidos pelo Banco Central para o Boletim Focus é de que o PIB (Produto Interno Bruto) vai cair 5,05% este ano. A expectativa para a inflação, 1,99% neste ano e 3,01% para o ano que vem.

O número de desempregados cresceu fortemente no país no fim de agosto e atingiu o maior nível desde o início de maio, 13,687 milhões de desempregados. Os dados são da Pnad Covid Semanal, pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“Acho maluquice celebrar que o PIB pode cair menos do que o esperado antes. Devemos ter a maior queda da história e o PIB per capita voltar para patamares de 2010. É uma séria recessão que impacta população, empresas e governo”, diz Silveira.

Olhando as implicações disso para o governo temos, por um lado, uma expectativa menor de arrecadação – com as empresas fechando as portas, são menos impostos arrecadados e as pessoas ficando desempregadas, é natural que o consumo caia. Por outro, a dívida pública só aumenta, resultado de bagagem de gastos altos e inflexíveis (que incluem um funcionalismo público oneroso) e de gastos anormais para combater a pandemia, como o auxílio emergencial, que representa nada menos que R$ 55 bilhões por mês.

No início de setembro, o Ministério da Economia divulgou sua previsão para a dívida bruta do governo geral (DBGG): 94,6% do PIB no cenário que considera um recuo de 4,7% no PIB e 96,9% no pior cenário, em que o PIB recua 6,77%. Como comparação, a DBGG estava em 75,8% no final de 2019, ou seja, a situação piorou muito este ano.

As medidas relacionadas à covid-19 têm impacto de R$ 605 bilhões em 2020, ou a 8,4% do PIB, sem contar um gasto adicional de R$ 67,6 bilhões com o pagamento do auxílio emergencial até o fim do ano.

“O mercado está observando que vamos ter um problema com a liquidez porque a dívida é muito grande”, afirma o CEO da Trevisan. Ele explica que a situação é agravada pelo fato da dívida brasileira ser de curto prazo – maior parte até dois anos. “Como temos dívida de curto prazo, não conseguimos aumentar a taxa de juros para um título e não para os outros. O ciclo de renovação e rolagem [renegociação para pagamento posterior] é curto, e para rolar o débito os credores vão pedir mais juros porque o risco aumentou. Isso cria ainda mais um problema que aumenta a dívida total”, complementa.

Por mais excepcional que a condição hoje seja, o risco de descumprir o teto de gastos (limites de despesas primárias públicas) em 2021, segundo o IFI (Instituição Fiscal Independente), também é alto.

De acordo Gilberto Kfouri, responsável por renda fixa e multimercados na BNP Paribas Asset Management, em entrevista ao Valor PRO, serviço de notícias em tempo real do Valor Econômico, alguns equívocos cometidos no programa de auxílio emergencial e, mais recentemente, a discussão em torno do Renda Brasil, que substituiria o programa assistencial Bolsa Família, têm colocado em xeque o teto de gastos.

“O risco de se mexer no teto é bastante desconfortável e, então, o mercado começa a colocar prêmio na curva de juros nominais e na de juros reais.”

O que poderia aliviar a situação seria as tão faladas reformas, em especial a administrativa e tributária, que mostrariam ao mercado que o Brasil está tentando diminuir o peso do estado e se livrar de gastos excessivos. Mas, não há um horizonte promissor. O projeto da reforma administrativa foi apresentado, mas não há sinais de avanço no Congresso.

Devo, não nego...

Diante das confusões políticas de Brasília, do cenário incerto – e aparentemente ruim – para a economia brasileira e para as empresas, e da estimativa de que o governo vai precisar de muito mais dinheiro do que tem para financiar o rombo do orçamento, os investidores perceberam um claro aumento do risco de o governo não conseguir pagar suas contas.

Com isso, é natural que os investidores peçam um prêmio maior para comprar títulos da dívida pública com o risco de mercado e de calote mais elevados, o que fez com que o juro subisse e, consequentemente, o valor dos títulos caísse.

O alerta ficou em um vermelho piscante no dia 10 de setembro. Com o colchão de liquidez bem menor, o Tesouro começou a elevar a oferta de títulos prefixados (as LTNs ou Tesouro Prefixado) e chegou a colocar à venda, de uma só vez (naquele dia), a quase 45 milhões de papéis, movimentando um volume financeiro de cerca de R$ 40 bilhões, no maior leilão da história. O que o mercado captou nas entrelinhas é que o governo estava precisando – mesmo – de dinheiro.

No entanto, a percepção de que o Tesouro estaria disposto a rolar a dívida com prêmios mais elevados provocou uma disparada das taxas do Tesouro Prefixado (de longo prazo para janeiro de 2024) no mercado secundário nos dias seguintes ao mega leilão. Isso acabou contaminando o Tesouro Selic.

“É um momento de dificuldade para o Tesouro e ele precisa ter mais habilidade ao fazer os leilões. Os prêmios vão abrindo e isso vai se retroalimentando com os investidores se desfazendo dos papéis no mercado secundário para pegar no leilão com um pouco mais de prêmio”, diz Sergio Silva, sócio e gestor da AZ Quest em entrevista ao Valor PRO.

Em nota divulgada em resposta ao Valor Econômico na segunda-feira, dia 21, o Tesouro disse que o aumento do prêmio cobrado por investidores nos títulos LFTs “tem impacto pouco relevante” para o órgão. Seriam dois os principais motivos: “o prêmio maior só será utilizado como referência em novas emissões, sem nenhum impacto sobre o estoque da dívida; e ii) a despeito do aumento no nível de prêmio, o custo total para o Tesouro permanece no menor nível da série histórica”.

Vale notar, porém, que essa visão do Tesouro não leva em conta o impacto nos fundos de renda fixa DI, obrigados a reavaliar a carteira com base nos novos preços.

Sinalização do Tesouro

Para Marcos De Callis, da Hieron, o governo precisaria agir agora comprando LFTs para mostrar que está acompanhando os movimentos e estancar a sangria dos valores dos títulos.

“Na época da marcação a mercado, em 2002, o BC e o Tesouro demoraram muito para fazer leilões de recompra de LFTs e levou o mercado a um pânico. Leilões de compra de LFT poderiam ser algo positivo para a indústria, os cotistas e também ajudaria a preservar um pouco os financiadores da dívida. Pode prevenir um efeito manada de resgates”, diz De Callis.

Desde aquele fatídico 10 de setembro, o Tesouro está bem mais cauteloso com o tamanho do apetite. Mas, Silva lembra que o Tesouro está com pouco caixa e tem pela frente o vencimento de aproximadamente R$ 600 bilhões nos próximos seis meses.

A venda de LFTs (Tesouro Selic) é instrumento natural para rolagem da dívida nos momentos de tensão no mercado. Mas, diferente de outras crises, quando a inflação e a taxa de juros mais altas tornavam esse papel mais atrativo, estamos com a Selic baixa e sem perspectiva de subir no curto prazo. A inflação também está controlada. O apetite por esse título – que hoje não rende mais que 2% ao ano, está muito menor e isso está se refletindo nos preços. Quem topa comprar, quer mais juros (bem em linha com a lei da oferta e demanda).

As LFTs já têm menos liquidez no mercado secundário (embora seja o título de maior participação na dívida), o que piora o processo de formação de preços.

“O descolamento da LFT em relação à Selic em si aumentou, a mesma dinâmica que já vinha acontecendo com as LTNs e NTN-Fs. Para trazer investidores de volta para os títulos prefixados, para as NTN-Bs e também LFTs – a LFT sempre foi um ativo muito importante até mesmo em momentos de maior turbulência porque entrega o percentual da Selic – precisamos ver a redução da incerteza sobre o fiscal, uma perspectiva de trajetória saudável da dívida”, diz Getúlio Ost, gestor de Renda Fixa da Porto Seguro Investimentos.

O gestor explica que seu fundo Porto Seguro Clássico, que está entre os DIs com prejuízos, não é tão comparável aos fundos que só aplicam o patrimônio nos títulos Tesouro Selic porque ele faz gestão ativa na carteira com os três tipos de títulos públicos. Na prática, isso quer dizer que o gestor e sua equipe usam não apenas Tesouro Selic, mas também títulos Prefixados e Tesouro IPCA+ (ou NTN-Bs) de prazos diversos para tentar ganhar dinheiro para os cotistas na alta e na baixa dos juros da economia brasileira. Mas, a rentabilidade negativa deste mês é sim reflexo da desconfiança com o governo.

Ele reforça que não vê um mercado “totalmente disfuncional”, nem cenário de pânico e que estamos em uma situação diferente de 2002, mas que é natural que o mercado peça mais para financiar o Tesouro “depois de todo esse gasto realizado para enfrentar a pandemia”.

Na gestora de patrimônio Hieron, a equipe orientou os clientes já no começo do ano, antes mesmo de todo o estresse da covid-19, a trocarem fundos DI para CDBs (Certificado de Depósito Bancário) de liquidez alta. O motivo? A rentabilidade pouco atrativa dos títulos públicos mais conservadores. “A parcela da liquidez dos clientes nesse tipo de fundo [DI] é mínima”, conta De Callis.

O estrategista acredita que a percepção de que o título Tesouro Selic está pagando pouco, até mesmo menos que a inflação em 12 meses, que também está afugentando investidores e pressionando os juros para cima.

“A pessoa que está deixando dinheiro lá sabe que não está remunerando nem a inflação. Quando a demanda cai, o preço cai e isso afeta a marcação a mercado das carteiras”, diz.

Por marcação a mercado ele quer dizer o movimento de avaliar e marcar o preço dos ativos da carteira com os valores atuais. Como grande parte dos fundos DI carregam em seus portfólios tanto LFTs (Tesouro Selic) como LTNs (Tesouro Prefixado) comprados antes do ajuste de preços, na marcação a mercado atual acabaram registrando perdas. E deu no que deu: cota negativa.

Fundos

No ano, os fundos de renda fixa seguem com captação líquida positiva, segundo dados da Anbima divulgados no dia 21 (e com dados até 16). São R$ 44 bilhões positivos no acumulado de 2020, sendo que só em setembro está positivo em R$ 47,6 bilhões. Mas nem sempre foi assim: os primeiros meses do ano foram de saídas importantes, seguindo o movimento de queda da Selic, um claro movimento de investidores buscando alternativas mais rentáveis.

Ao analisar as carteiras dos fundos DI que estão se dando mal e outros que estão saindo ilesos do problema, o economista Marcelo d’Agosto explica que a composição da carteira fez diferença.

“Até agora, o que deu para perceber é que quem tinha títulos Tesouro Selic na carteira perdeu mais do que quem tinha outros títulos públicos com trava para a taxa Selic. E quem tinha Tesouro Selic com prazo de vencimento maior perdeu mais do que quem tinha os mesmos títulos com prazo de vencimento mais curto”, diz.

Ainda é cedo para saber se este movimento será temporário ou se teremos que nos acostumar com volatilidade até em títulos conservadores como o Tesouro Selic. Também é difícil saber se teremos uma reverberação em outros tipos de renda fixa, como em títulos de crédito privado. Mas já dá para tirarmos duas lições desse episódio recente.

A primeira, que não é o caso de pânico, já que quem mantém os títulos públicos até o vencimento, no longo prazo, não são afetados por essas variações de preços, já que vão receber o prometido (atrelada à Selic, prefixada ou indexada à inflação). E a segunda que existe risco em todos os investimentos, inclusive de renda fixa, e é preciso mapeá-los antes de aplicar o dinheiro.

Procurados, BTG Pactual e BV Asset não quiseram comentar a rentabilidade negativa de seus fundos.

 

Fonte: Valor Investe