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Segurar dólar pode ser mau negócio com inflação tolerada nos EUA

Quarta, 16 Setembro 2020

Você aí, brasileiro escolado, conhece bem o beabá da inflação – e se acha que não, é só clicar aqui. E caso tenha alguma familiaridade com economia, entende que, em linhas bem gerais, o que um banco central faz é subir juros quando a variação média dos preços sobe muito, ou cortar, quando o dragão está domado.

Mas, lá nos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed, a autoridade monetária de lá) tem mais uma meta a cumprir. É dos raros exemplos no mundo. O banco central americano precisa entregar a mais baixa taxa de desocupação da força de trabalho possível, sob uma inflação ao ano de, no máximo, 2%.

Ou melhor, foi exatamente assim durante três décadas. Mas, como tantos outros nesta crise, esse jogo mudou.

Nesta quarta-feira (16), não só o Banco Central do Brasil tem decisão sobre juros, marcada para depois das 18hs. Nos Estados Unidos, às 15hs, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) igualmente tem anúncio marcado para fazer. A novidade, no entanto, já foi adiantada faz alguns dias.

Jerome Powell, presidente do Fed, avisou no fim de agosto que, daqui em diante, se o emprego voltar, a inflação pode até ficar um pouco (só um pouco!) maior, que tudo bem. Para isso, lançará mão de uma meta mais flexível que a tradicional.

  • Será considerada uma média de 2% de inflação ao ano calculada num prazo mais dilatado, cuja fórmula Powell fez questão de não contar para ninguém;
  • Pode vir a ser esse o preço, portanto, a se pagar pela retomada do crescimento da maior economia do mundo, epicentro da pandemia de covid-19.

"A meta ainda é de 2% ao ano, como era, mas agora vão levar em consideração períodos anteriores, em que a variação média dos preços nos Estados Unidos ficou bem abaixo da meta", explica Fabiano Godoi, sócio e chefe de investimentos (CIO) da Kairós Capital. "Eles não quiseram se comprometer com uma fórmula para que não se coloquem em planilhas, como era feito pelo mercado, e que já se saiba mais ou menos o que o Fed vai fazer, foi uma forma de não criar expectativas".

Ainda assim, é claro, o mercado vai fazendo as suas contas, por mais que Powell tente dificultar.

"Ao sabor de novos dados, temos de ir revisando as expectativas, mas, com o que temos agora, com os dados deste instante, a expectativa é de que essa tolerância com a inflação do Fed leve seus juros a não subirem, pelo menos, até 2023", diz Godoi. "É muita coisa, um período bastante prolongado."

Luiz Eduardo Portella, sócio-gestor da Novus Capital, também tem feito suas estimativas.

"A gente tem um ano ainda de inflação baixa garantida nos Estados Unidos, mas, no meio de 2021, temos de começar a olhar com mais atenção", diz. "E isso vai ser bom para o mundo. Nos últimos anos, o dinheiro do mundo veio fugindo para os Estados Unidos, e agora foi aberta a perspectiva desse fluxo sair de lá para Europa, Ásia e outros emergentes."

Voltando ao livro-texto de economistas, inflação nada mais é que perda de poder de compra de uma moeda.

  • E se haverá tolerância com ela no Estados Unidos, com juros zerados a perder de vista, sua eventual aparição implicaria menos compras podendo ser feitas com dólares. Ou, do ponto de vista de investimentos, podemos supor grandes chances de a moeda americana ir perdendo valor em relação às outras nos próximos anos.

"Estamos num momento muito importante, de virada de tendência global e fim de ciclo de fortalecimento do dólar", diz Portella. "Este novo movimento do Fed vai desvalorizar o dólar, que já desde 2008 vinha ganhando força, com os Estados Unidos a frente de grandes economias em termos de deferencial de crescimento."

Mas Portella não atribui só à nova tática monetária americana a perspectiva de perda relativa de poder de bala do dólar. Afinal, quando falamos sobre o preço da moeda de um país, precisamos considerar a outra ponta cambial. Por exemplo, o euro, que já dá sinais de ganhos de predileção de investidores em detrimento do dólar.

E por que o euro desponta? "A Europa começou a andar rumo à união fiscal, sendo que já existe união monetária, com o euro, e comercial entre os países da região", explica Portella, se referindo ao fundo de resgate de 750 bilhões aprovado pela União Europeia em julho.

Em linhas gerais, países em melhores condições financeiras no grupo ajudarão a pagar as contas dos quebrados, seja em forma de empréstimos ou mesmo doações. "Com isso, a Europa passou a ser uma alternativa clara, já há fluxo de saída dos Estados Unidos para lá, e o Fed incentiva ainda mais esse movimento ao desvalorizar a moeda americana", diz.

Além do aspecto econômico, há de se considerar aqui ainda o aspecto político, agora aparentemente menos tumultuado que o americano. Com a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), pré-pandemia, temia-se que outras nações seguissem o mesmo caminho. Agora, com contas a pagar sendo divididas entre os países, parece menos provável que a União Europeia sofra novas baixas.

Se uma maré de união parecia impensada na Europa até o começo do ano, a fatalidade da pandemia acabou tendo por efeito apaziguar tensões no continente.

Já nos Estados Unidos, para além dos conflitos de rua gerados por assassinatos de negros por policiais, existe uma eleição a ser resolvida em novembro. E a depender de quem levar, a rota da política econômica americana será diferente.

"Se der Joe Biden [ex-vice de Barack Obama, desafiante democrata do presidente republicano Donald Trump] vai ser bom para o mundo", acredita Portella. "Mas a questão da China vai continuar em pauta seja ele ou Trump o vencedor, ainda que a forma de se lidar seja diferente, e o dólar seguirá no longo prazo perdendo força."

Sim, explicações feitas, chegou a hora de você expandir seus horizontes para se proteger. O mantra da diversificação, neste contexto, cai como uma luva.

No entanto, ao contrário da simples diluição de riscos na bolsa entre vários setores e empresas, para investidores pessoa física essa luva tende a ser mais complicada de se vestir.

"Estratégia de diversificação de moedas só faz sentido em portfólios grandes, carteiras maiores de investimentos. O pequeno poupador não deveria se aventurar", diz Marcos De Callis, estrategista da Hieron Patrimônio Familiar e Investimento.

Diversificação de portfólio em moedas, aliás, não parece ser "bolinho" nem mesmo para quem tem grande bagagem no mundo dos investimentos. "É das coisas mais difíceis para um gestor, porque em ações a tendência é que ela suba, enquanto as moedas não têm uma direção no longo prazo", diz De Callis. "Se você está em uma economia estável, aliás, a tendência é mudar pouco."

O estrategista da Hieron, por exemplo, revela que "errou bastante" no fim do ano passado ao não antecipar que o preço do dólar no Brasil saltaria de R$ 4 para quase R$ 6.

O executivo entende que moedas cumprem bom papel como reserva de valor no longo prazo, especialmente em países emergentes, mas o dólar em patamar tão valorizado não faz sentido agora.

"Quando o dólar ficar mais perto de R$ 4, R$ 5, vamos olhar se faz sentido o investimento para os clientes que têm portfólio internacional", diz. "Temos aumentado exposição em euro e em libra, mas esse é o tipo de sugestão que só faz sentido para investimento de grandes carteiras."

Do outro lado, Bernard Tamler, economista da Gap Asset, pondera que a economia americana deve encolher 4% neste ano, metade do tombo previsto para a Europa (-8%). Uma economia menos fragilizada dá maior vantagem para a moeda.

"Por mais que os EUA estejam com política monetária que prejudique o dólar, a perspectiva de crescimento do país são melhores. Na Europa ainda tem o Reino Unido saindo da União Europeia. Particularmente, acreditamos que o dólar vai enfraquecer, mas não muito", diz Tamler.

Para pequenos investidores, De Callis acredita que aportes em fundos multimercados já trazem boa diversificação ao portfólio.

"Como profissional, eu não recomendaria o pequeno investidor se aventurar em moedas, só em real e dólar, mas o preço atual da moeda americana não faz sentido", enfatiza.

  • Assim, o pequeno investidor até pode se expor em diversas moedas, mas indiretamente, com a compra de ações - ou BDRs (Brazilian Depositary Receipts) - de empresas diferentes países, por exemplo.

"Há oportunidades de olhar outros ativos que estão em outras moedas", sugere Luiz Aires, chefe da área de relações com investidores da gestora de fundos RPS Capital. "Em vez de comprar um apartamento aqui para receber aluguel em real, por exemplo, talvez faça sentido comprar um apartamento em Miami que dê rentabilidade em dólar".

"Acho que o investimento direto em moedas por pessoa física é arriscado", diz Godoi, da Kairós. "Por várias razões, inclusive pelo básico de tudo, de demandar um bom tempo tentando entender tudo, para saber se é melhor ou pior a moeda A, B ou C."

Para ele, parece mais razoável que essa diversificação seja busca por meio dos produtos oferecidos na indústria de fundos. "E pensar no longo prazo, não para hoje ou amanhã, o quanto o investidor deseja estar exposto a moedas diferentes do real", diz. "As perspectivas para câmbio mudam muito, então, para fazer várias mudanças no dia a dia entre as moedas, fica difícil alguém não especializado tentar, o recomendado é sempre um profissional".

Para quem quer se expor a moedas via ações, Tamler, da Gap Asset, lembra que a parcela de diversificação em empresas estrangeiras deve estar dentro do percentual da carteira direcionado para renda variável. Para investidores menos ousados, ele considera a aplicação direta em dólar menos arriscada.

Sobre essa tática de buscar diversificação cambial via bolsa, buscando ações de empresas de países de quem se espera por moedas fortalecidas, Godoi é reticente.
"Tendo a achar que é bom sempre o investidor separar bem o que ele deseja", diz. "Se ele deseja bolsa, é uma conversa, se quer moedas, outra conversa".

Para Rodrigo Gaze, gestor de mercados internacionais da Ace Capital, é hora de investidores manterem olhos firmes nos chamados ativos reais, como já tem sido.

Ele entende que o direcionamento dado pelo Fed, de maior tolerância com preços mais altos na economia e juros rastejando, tende a ser seguido por outras autoridades monetárias. Logo, não só o dólar, mas outras moedas padeceriam de perda de valor ao longo dos anos.

"Ativos como bolsa e ouro sairão ainda mais fortalecidos, e são a melhor opção para pessoa física, mais que moedas", diz. "Para qualquer país que siga os passos do Fed, ativos reais parecem ser uma melhor opção dentro dele".

Godoi, da Kairós, segue essa mesma linha. "Num ambiente como este, e que deve se manter por um prazo mais dilatado, é natural imaginar que ativos de risco, e não de proteção, tenham espaço relevante no portfólio", diz. "Então é natural imaginar que vamos continuar vendo migração de recurso vindo dos investimentos mais conservadores da renda fixa para alocação em fundos multimercados ou de renda variável em geral e em imóveis".

Para Tamler, da Gap Asset, diversificação de investimentos é o último "almoço grátis" em investimentos. Sirva-se antes que acabe, mas escolha com cuidado o que vai no seu "prato".

 

Fonte: Valor Investe