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Portabilidade de fundos pode aumentar competição; mas qual o melhor caminho?

Quinta, 10 Setembro 2020

O consumidor tem em suas mãos cada vez mais poder para decidir sua vida. A competição e ferramentas de comparação de preços e serviços permitiram que ele perceba que, se não estiver sendo bem atendido ou não gostar do serviço que tal empresa está entregando, há como mudar de fornecedor. Isso é válido para diversos setores, inclusive o financeiro, com a competição entre bancos e fintechs se acirrando. Mas, no segmento de investimentos, os brasileiros ainda não tem toda essa liberdade de movimentação de recursos.

É claro que o cliente sempre pode resgatar as aplicações da instituição A e transferir para a B. Mas isso depende de prazos de carência para saque de alguns produtos, além de eventualmente custos tributários indesejados, sem falar na burocracia ou pressão psicológica que às vezes pode ser imposta pelo gerente ou assessor da empresa que está perdendo o cliente.

A transferência de custódia ou portabilidade de ativos já está prevista nas regras da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas com muitas brechas. Para ações e outros ativos de renda variável é mais fácil. Se você tem uma carteira de ações custodiadas na corretora A consegue, cada vez com mais facilidade, transferi-las para a corretora B.

A realidade, porém, é diferente para produtos de renda fixa, quando a portabilidade é mais ou menos fácil a depender do papel, e também para os fundos, para os quais não existe uma regra clara hoje. Ciente de que é preciso organizar e dar celeridade a esse processo, a Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) lançou recentemente uma proposta para autorregulação da portabilidade.

“O mercado evoluindo, o tema de portabilidade passa a ser mais relevante, e a Anbima queria trazer mais transparência e regras claras de portabilidade também para os fundos de investimentos”, comenta Luciane Effting, vice-presidente do Fórum de Distribuição da Anbima, em entrevista exclusiva ao Valor Investe.

Para alguns agentes do mercado, se a transferência de todos os investimentos se tornar algo fácil de se fazer, isso pode representar um fator crucial no mercado, em que 90% dos recursos ainda estão aplicados nos principais bancos do país.

A proposta de regulamentação da portabilidade trazida pela Anbima fica aberta para discussão até o dia 24 de setembro, período em que os interessados no tema podem enviar críticas, dúvidas, sugestões e comentários sobre como esse processo deveria ocorrer. Assim que finalizar a audiência pública, a Anbima tem um mês para analisar os comentários, aprovar as propostas e publicar a norma. Caso não receba sugestões até o dia 24/09, a norma, como está, pode ser publicada assim que acabar a audiência.

Para que os leitores do Valor Investe possam avaliar se a regra proposta pela entidade vai atender seus interesses, explicamos aqui como o modelo deve funcionar. Mais, primeiro, explicaremos mais sobre os benefícios dessa liberdade para os investidores.

Vantagens

A vantagem mais óbvia da portabilidade é não ter que resgatar o fundo ou outro investimento para mudar de corretora. “Entre os principais benefícios da portabilidade está a liberdade que o investidor passa a escolher a plataforma que quer operar. Quando faz a portabilidade, transfere custódia do ativo sem precisar vender o ativo, resgatar, e com isso perder o benefício fiscal da tabela regressiva do IR. Ele não precisa se sujeitar também às oscilações do mercado [muitos fundos têm resgate só depois de 30 dias do período] para fazer a transferência; leva a posição do jeito que ela está”, explica a executiva da Anbima.

Isso, segundo ela, vai facilitar a cultura do investimento e desenvolver uma sociedade mais poupadora.

Mas para Guilherme Assis, fundador do consolidador de investimentos Gorila Invest, as vantagens não param por aí e a portabilidade em si é, provavelmente, “a questão mais relevante no que tange o mercado de investimentos” hoje, algo no patamar do open banking (abertura e compartilhamento de dados bancários pessoais para tornar os serviços financeiros mais acessíveis, rápidos e eficientes).

Tanto o open banking quanto a portabilidade de investimentos têm o poder de promover a competição. Assim como aconteceu em outros setores, como o de telecomunicações, espera-se que se traduza em serviços e custos melhores para os clientes.

“A partir do momento em que tem portabilidade rápida e eficaz, o jogo começa a ser jogado em cima do estoque e não liquidez. As distribuidoras começam a ir atrás de um dinheiro que está nos fundos e não só do que ainda não está aplicado. Isso traz muito mais competição e competição muito maior acaba sendo benéfica ao investidor”, comenta Assis.

Ele ilustra com o seguinte exemplo: hoje, quando uma corretora ou um profissional de investimento como agente autônomo ou mesmo consultor conquistam um cliente, elas captam o dinheiro marginal deste cliente.

“O cliente vai começar mandando para ele só uma fração do patrimônio dele, vai mandar a liquidez dele para a nova corretora. De R$ 1 milhão que ele tenha, R$ 50 mil está em caixa e R$ 50 mil em ativos líquidos, de liquidez diária. O restante está em CDBs de 2 anos e outros ativos em outra instituição ou mesmo um fundo que ele terá um custo tributário para resgatar. Se o momento for de volatilidade do mercado ele não vai querer resgatar e correr o risco de realizar prejuízo. Resumindo, as corretoras estão competindo apenas em cima da parte líquida do patrimônio do cliente e agora o jogo pode mudar”, diz Assis.

Para ele, como consequência, além de correr atrás para entregar ótimos serviços e atendimento ao cliente, as distribuidoras também podem oferecer benefícios financeiros para os clientes, como cashbacks e outras facilidades. “Assim como o open banking, a portabilidade de investimentos é uma das coisas mais transformadoras do mercado de investimento”, completa.

Propostas

As mudanças que já estão acontecendo podem melhorar a vida do investidor que poderá migrar com mais rapidez e facilidade de corretora, plataforma ou banco. Pelo menos é o que diz a teoria. Na prática, será que vai funcionar? E como você gostaria que funcionasse? Entenda o que a Anbima está propondo.

A principal mudança é que agora será obrigatório seguir as normas da entidade – até então, estava vigente apenas um Manual de Boas Práticas, publicado pela Anbima em 2018 com algumas orientações. É claro que logo após a norma ser publicada, as instituições financeiras, corretoras e plataformas terão um tempo, entre dois a três meses para se adaptar, mas depois disso, o descumprimento do que for proposto será sujeito a punições (estas que ainda não estão claras).

Luciane, da Anbima, explica que a autorregulação tem três principais focos: trazer transparência para os investidores, definir papéis das instituições que participam desse processo e padronizar prazos.

1 - Transparência

No caso da transparência, a entidade quer que todo mundo deixe claro e acessível informações em seu site sobre a possibilidade de o investidor fazer a portabilidade de seus ativos. Além disso, precisa conter nesta página todos os documentos necessários para que o cliente faça a transferência de fundos de investimentos (além de outros ativos de renda fixa e variável) e os prazos envolvidos nessa movimentação.

Também é preciso oferecer um canal de comunicação para esclarecimento de dúvidas sobre o processo de transferência de ativos. Mas, as exigências para fazer a transferência dos investimentos ficam a critério de cada empresa.

“Isso garante transparência ao processo desde o início”, comenta Luciane.

2 - Papéis

Outro ponto sobre o qual a Anbima se debruçou foi o dos papéis e das responsabilidades dos distribuidores e do administrador dos fundos.

A transferência deve ser solicitada para a instituição cedente (aquela em que o cliente possui os investimentos) e não para a cessionária (a que receberá a transferência das aplicações). O administrador, quando concluir a transação, deverá avisar o distribuidor cessionário e o gestor do fundo, disponibilizando um arquivo para o gestor com todas as informações da operação.

O caminho é, contudo, exatamente o inverso do que fez o mercado de telefonia. Hoje, para fazer portabilidade da operadora A para a B, o cliente só precisa falar com a B e ela deve cuidar de todo o processo (comunicar a empresa A e fazer todo o trâmite de transferência). A ideia é prevenir que a empresa A crie obstáculos para a migração do cliente (ainda que possa, claro, tentar convencê-lo a mudar de ideia). Com a facilidade de mudar de lá para cá, a competição entre as empresas se acirra e quem ganha, em teoria pelo menos, é o cliente.

Para alguns agentes do mercado, o procedimento adotado pela Anbima poderia seguir o da telecomunicação. O risco, dizem, é da plataforma ou corretora cedente justamente criar empecilhos para autorizar a migração dos clientes – e do seu dinheiro, claro - para concorrentes.

Perguntada sobre a questão, Luciane explicou que a entidade acredita que o pedido de transferência ao cedente é o caminho mais rápido. Para ela, o procedimento facilita a autorização da transferência porque, do contrário, depois de o cliente pedir a portabilidade para a empresa da qual quer ir, a cessionária teria que pedir as informações para a outra distribuidora e a cedente precisaria confirmar ainda a portabilidade com o cliente, ou seja, entrar em contato com o cliente para comprovar que foi ele mesmo que fez a solicitação.

“Do jeito que propomos economiza tempo. Se pedir para o cessionário, ele terá que acionar o cedente, que vai buscar o investidor para confirmar o que realmente pediu. Da forma que pensamos é o investidor pedindo diretamente para o cedente e entregando os documentos no ato do pedido, momento em que já começa a contar prazo de dois dias de ativos custodiados como determina CVM”, explica Luciane.

3 - Prazo

Em questões de tempo até que a transferência seja concluída, a Anbima está propondo o seguinte:

  • Limite de dois dias úteis para ativos custodiados, como determinado pela CVM
  • Limite de cinco dias úteis para cotas de fundos

Neste último caso, os cinco dias são divididos em: dois dias para o cedente disponibilizar as informações ao cessionário; um dia para que o cessionário acione o administrador; e mais dois dias para que o administrador finalize o processo. O gestor não precisa mais atuar no processo e qualquer necessidade de mudança nesses prazos deve ser avisada ao investidor, com a nova data de cumprimento.

O prazo sempre começa a contar a partir do momento em que o investidor entrega a documentação necessária à corretora/plataforma/instituição cedente.

Além do prazo, a Anbima também exige que os agentes do mercado indiquem possíveis motivos para casos de recusa.

Canal

A Anbima, porém, deixou vago os procedimentos necessários para que tudo seja feito. A nova norma proposta recomenda (não obriga) que o processo seja feito por meio eletrônico, em linha com o que orienta o regulador, a CVM.

Muitas corretoras e plataformas já vem se adaptando e tornando o procedimento digital, mas a maioria ainda exige que a pessoa imprima o documento, assine e escaneie, por exemplo, o que dificulta e torna mais lento o processo. Além disso, levanta dúvida se não pode dar margem para questionamentos sobre a autenticidade do pedido e enrolar ainda mais o processo.

Um questionamento do mercado é que, em teoria, por se tratar de transferência para contas de mesma titularidade, deveria ser menos burocrático.

“Não haverá obrigação de ser feita por meio digital, fica a critério de cada distribuidor. É claro que, observando o movimento de digitalização de serviços nos últimos meses, o investidor, quando toma decisão de escolher plataforma, pode levar isso em consideração. Sem dúvida, as empresas que se digitalizarem e oferecem maiores comodidades têm diferenciais pra serem escolhidas”, diz Luciane.

Ela explica que a decisão de deixar aberto ao gosto do distribuidor também leva em consideração que a digitalização envolve custos com tecnologia e que a decisão de investir nisso cabe a cada participante.

Fundos espelhos

Outra questão observada é de qual fundo pode ou não ser alvo de portabilidade. Na prática, a transferência pode ser feita se a corretora B, para onde o cliente quer mudar, tenha o mesmo fundo (com o mesmo CNPJ) do fundo que ele tem dinheiro aplicado na corretora A. Se o CNPJ for diferente ou a corretora B não tiver tal fundo, não é possível fazer a transição. Esse é caso, por exemplo, dos fundos espelhos.

É comum as plataformas criarem fundos de investimentos que espelham a carteira de outro produto, gerido por outra casa. Na prática, é um novo CNPJ composto por 99% de cotas do fundo que ele quer espelhar. O problema é que, apesar de ser ter os mesmos ativos e gestão do fundo-mãe, são produtos diferentes. As plataformas muitas vezes usam essa estratégia de criar fundos espelhos justamente para reter o cliente porque sabem que esse ativo o investidor não encontrará em outro lugar. Se quiser deixar a casa, só tem uma opção: resgatá-lo.

“A portabilidade só funciona para o fundo que o distribuidor A, cedente, e o B, cessionário, tenham em comum nas prateleiras. Quando é um fundo que só o cedente tem, não tem como fazer portabilidade; precisa fazer o resgate do fundo e aí levar o recurso para outra corretora”, explica Luciane.

 

Participe

O investidor, incluindo o de varejo, menor, tem agora a oportunidade, na audiência pública, de entender o que está sendo proposto e dar pitacos que achar que podem melhorar. Para conhecer os detalhes da norma proposta pela Anbima acesse aqui.

Comentários e sugestões podem ser enviados para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. até o dia 24 de setembro – associados também podem opinar por meio do Workplace.

Próximos passos

Após o período de audiência pública e validação final pela Anbima, as normas farão parte do documento Regras e Procedimentos para Transferência de Produtos de Investimento, associado ao Código de Distribuição.

O Código de Administração de Recursos de Terceiros também será atualizado para incluir a menção às novas normas, que são aplicadas para os gestores e administradores que distribuem seus próprios fundos.

 

Fonte: Valor Investe