A B3 está surpresa com a expansão do número de investidores pessoa física e a força de suas compras. Não é para menos. Nos três meses de pandemia do coronavírus, um período de extrema volatilidade, os investidores individuais ampliaram a posição em ações em 27 bilhões de reais na B3. Esse é o volume de dinheiro aportado pelo pequeno aplicador diretamente na bolsa, sem intermédio de gestores de recursos, já descontado o volume de vendas, durante os meses de março, abril e maio.
Nesse período, foi o pequeno investidor quem amorteceu a forte saída do investidor estrangeiro: comprou mais de 70% dos 37 bilhões de reais que os fundos internacionais venderam.
O número de investidores cadastrados para negociação teve um acréscimo superior a 500 mil nos três primeiros meses do ano. Mas o que chama mais atenção é que apenas no mês de março, foram 300 mil novos investidores — sem dúvida no pior mês para a bolsa durante a pandemia, tanto em perdas quanto em volatilidade.
Gilson Finkelsztain, presidente da B3, conversou com a EXAME sobre o assunto e deu seu veredito: o desempenho leva a crer que o “suitability”, a análise de disposição a risco do investidor, está funcionando. “Tudo indica que a questão do perfil de risco foi bem trabalhada. Muitos profetas do apocalipse apontavam que, na primeira grande crise, a pessoa física sumiria.” O que ocorreu foi exatamente o contrário disso.
Até o fim de março, a pessoa física se tornou proprietária de 14% das ações de empresas em circulação na bolsa. Esse percentual era 12% no fim de 2019, depois de anos estagnado em 10%. Mas, para o executivo, há muito ainda para acontecer e muito dinheiro para vir. “Não é uma corrida de 100 metros. É uma maratona de realocação de ativos.”
O tema é a capa da edição da revista EXAME que circula a partir de hoje. A seguir, os principais trechos da conversa com Finkelsztain, por temas:
Finalmente, a pessoa física veio
“Aqui, no Brasil, esse movimento é efeito mais da questão macro do que o coronavírus, embora seja fato que a atividade aumentou em outros mercados também, com a pandemia. Nos Estados Unidos, o Financial Times apontou em matéria recente que o número de abertura de contas em corretoras saltou de uma média mensal de 100 mil para 300 mil. As pessoas ficaram mais tempo em casa e movimentaram mais seus portfólios.
Mas, no Brasil, tem uma mudança estrutural de cenário macro muito importante. Já vivemos há algum tempo com inflação sob controle e trilhando um caminho de estabilidade fiscal. Tudo isso é importante. Mas a grande questão agora, a novidade, é a taxa de juro [Selic]. Essa, sim, surpreendeu todo mundo. Lembro de quando definimos orçamento aqui na B3 para 2019. Falávamos de como seria com o juro a 6% ao ano. Essa barreira foi rompida e fomos para os 4,5% ao ano. Agora, estamos nos 3% e já estamos falando de previsões de 2,5%.
O juro baixo, aliado ao trabalho das plataformas digitais e à mudança de atitude dos bancos de varejo, tem transformado o mercado e a chegada da pessoa física nesse momento de transformação é muito importante.”
Sim, importa
“Antes, o investidor estrangeiro ditava muito o mercado brasileiro. Quanto tempo ouvimos isso? Então, agora vimos que, quanto mais completo for o ecossistema, melhor é o equilíbrio para o mercado. Esse ecossistema a que me refiro é formado por diferentes tipos de investidores locais, diferentes internacionais, cada um com um perfil. A pessoa física tem um perfil próprio e complementa muito o ambiente de negociação. Ela traz mais estabilidade à base de acionista, pois pensa mais no longo prazo. É uma aplicação de tíquete pequeno, mas de estabilidade maior. O investidor realmente se vincula para entender a companhia. Ele pode até entrar pela porta errada, da dica, mas depois se dedica e estuda. A pessoa física nunca vai ser o maior percentual, o maior investidor. Isso é pouco provável. Mas complementa com 10% a 20% da base de acionistas e isso é muito rico para o mercado e para a companhia.
Além disso, a atuação da pessoa física diretamente no mercado a capacita melhor até para entender a dinâmica dos fundos de investimento e da marcação a mercado. Ela não entrou só nas empresas, entrou nos fundos imobiliários e de crédito. Tudo isso educa ainda mais esse público. É muito rico.”
E as empresas estão prontas?
“As companhias estão se dando conta da importância da diversificação da base agora. Estão ainda aprendendo a falar com esse público, que não está acostumado com a linguagem do relações com investidores. Elas estão começando a valorizar essa base, em especial com a crise. Obviamente, precisam se adequar. Ainda estão no início desse processo.
Nós mesmos, como empresa, testamos um podcast de 15 minutos para que toda nossa base de funcionários e dos investidores pudesse escutar e entender nosso resultado. O aúdio foi divulgado junto com o balanço do primeiro trimestre.
O investidor está se alimentando de informação que nunca esteve disponível para ele antes, o que ajuda a explicar o crescimento. A pessoa física tem acesso a analistas dedicados. Tudo isso faz parte desse ambiente novo de mercado, mais digital, com as plataformas de fundos e corretoras. Antes tudo isso não existia. Podemos até ter uma discussão de embalagem das informações, mas há conteúdo bom acessível.
Além disso, recentemente, nós, B3, temos sido provocados por bancos, pelas áreas de private banking, para lives para investidores pessoas físicas, como nossos acionistas. O investidor individual está começando a chegar nos departamentos de relações com investidores e nos presidentes das empresas. Antes, havia milhões de intermediários nessa relação.”
IPOs
“No meu entendimento, a pessoa física vai ser especialmente importante para as aberturas de capital de companhias de menor porte. Quanto menor o valor de mercado da empresa, mais relevante será. Um exemplo disso foi o IPO da Priner [empresa de serviços de manutenção industrial, que captou 174 milhões na abertura de capital no início do ano]. A demanda da pessoa física foi 9 vezes maior do que o alocado. Isso é, inclusive, uma agenda nossa, da B3: trazer mais empresas de menor porte para a bolsa. Pensando que o próximo passo das companhias médias será acessar o mercado, a pessoa física terá papel de ainda mais destaque.
Mas também vale lembrar que a pessoa física é quem está por trás dos chamados investidores institucionais, com os aportes nos fundos de mercado e nas previdências. Quando olhamos para indústria de fundos e vemos que, dos 5,3 trilhões de reais de patrimônio, apenas 10% está alocado em ações, vemos quanto de fluxo ainda tem para vir para bolsa. A pessoa física vai migrar para ativos de maior risco. Cada vez mais, o institucional doméstico será mais relevante também para as grandes ofertas.”
Risco
“Ficamos surpresos e satisfeitos com a reação dos investidores durante a crise. Muitos profetas do apocalipse disseram que na primeira crise, a pessoa física sumiria. Mas foi bem diferente. A explicação? Primeiro, ele está mais educado. Segundo, a competição por ativo é muito diferente, porque o juro está baixo e em queda. O investidor tem muito por alocar ainda. Se os intermediários estivessem vendendo muito mal para a pessoa física, esse investidor estaria reagindo diferente. Tudo indica que a questão do perfil de risco foi bem trabalhada.”
Diversificação e BDRs
“No fim do ano passado, eu tive várias conversas com gestores de fundos preocupados com a falta de ativos no mercado brasileiro. Os fundos estavam captando tanto que não teriam ativos suficientes disponíveis para comprar. Eles temiam que isso levaria a um sobreaquecimento dos preços e, eventualmente, a uma bolha. No longo prazo, a pessoa física vai continuar migrando para ativos de risco, pensando que a estabilidade do país será mantida. Essa não é uma corrida de 100 metros. É uma maratona de realocação de ativos.
A diversificação é uma grande agenda nossa, para trazer novas empresas, mas não só isso. A crise também mostrou que quem tinha uma posição mais diversificada, por classes e tipos de ativos, ficou melhor. Quem teve acesso a BDR, por exemplo, se beneficiou da questão cambial.
Muita gente achava que a B3 não seria patrocinadora do debate da diversificação com ativos do exterior. Acreditavam que teríamos uma postura de proteger o mercado local. Mas é o oposto disso. Somos totalmente a favor do acesso ao BDR pela pessoa física, justamente pela diversificação que representa. A bolsa tem condições técnicas, via corretoras, de dar esse acesso a papéis de companhias internacionais com tíquetes pequenos e de forma barata. Assim, com 200 reais, 300 reais, seria possível investir em empresas como Microsoft, Amazon, etc.
Estamos aguardando a definição da CVM [Comissão de Valores Mobiliários] de uma audiência pública sobre BDRs. [A fase de manifestação do público terminou em 28 de fevereiro e conteúdo está em análise na autarquia]. As novas regras em discussão podem tanto acabar com a restrição para que empresas brasileiras listadas lá foram tenham BDRs aqui, como a XP, a Stone e a Arcos Dourados, como também podem permitir que a pessoa física invista diretamente nesses papéis. Entendemos que hoje o investidor tem formas modernas de se informar e acreditamos que proibir não é o melhor caminho.”
[Atualmente, a regra da CVM impede que empresas brasileiras com mais de 50% dos ativos aqui se listem na B3 apenas na forma de BDR. Essa regulação é herança de problemas passados com Agrenco e Laep, ocorridos há pouco mais de uma década, e que levaram a discussões a respeito de fraudes. Também ficou estabelecido lá atrás, fruto da tentativa de proteger o investidor, que somente quem possui patrimônio de pelo menos 1 milhão de reais disponível para aplicar no mercado, o chamado investidor qualificado, pode comprar esses certificados.]
Proteção do investidor
“Nossa regulação tem muita coisa boa. Aqui, o cliente de uma corretora é entendido como beneficiário final e, por isso, está protegido de perder dinheiro se a corretora quebrar. Com o tempo, também vamos caminhar para modelos em que os ativos de aplicações financeiras possam ser usados como garantia pelos investidores para operações de crédito. Também está em debate na CVM a discussão sobre como proteger o investidor de riscos de erros em execução de ordens.”
Mas e o ressarcimento?
“De fato, não desenvolvemos aqui as ações coletivas de indenização de investidores, tão comum nos Estados Unidos, as chamadas ‘class actions’. Mas isso é uma questão de mudança de lei, não de regulação. Na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) estão sendo testados casos coletivos [Petrobras, Vale e IRB]. De forma geral, nós aqui na bolsa somos favoráveis a eliminação de todos os gaps regulatórios. Mas não acho que isso seja um impeditivo para o desenvolvimento do nosso mercado.”
Fonte: Exame