O setor agrícola mundial está enfrentando as maiores transformações já ocorridas no período do pós-guerra– de mudanças nas preferências dos consumidores e melhorias na produtividade alavancadas pelo uso de tecnologia a turbulências nos mercados internacional e doméstico. Identificamos quatro tendências que podem influenciar significativamente o direcionamento do setor agrícola nos próximos anos – tanto positiva como negativamente:
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Vamos comer de forma distinta. Os mercados em desenvolvimento estão alcançando os níveis de consumo de proteína dos mercados desenvolvidos, e ambos estão combatendo a obesidade. Se esta tendência se acelerar, ela poderá causar um aumento na demanda por alimentos ricos em proteína e por produtos substitutos de carne.
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Vamos comprar de lugares diferentes. Podem surgir novas regiões de produção de alimentos – em especial, a África Subsaariana, e o Leste da Ásia — estimuladas por custos mais baixos de energia e desafios relacionados ao clima enfrentados pelas regiões agrícolas tradicionais.
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Vamos produzir alimentos e comercializá-los de maneira distinta. Avanços na tecnologia agrícola ampliarão a transparência e a rastreabilidade por toda a cadeia de suprimentos. Isto deverá resultar em aumento da eficiência, redução do desperdício e diminuição das margens de lucro.
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Vamos comercializar com base em regras diferentes. Subsídios e intervenções governamentais podem redefinir as dinâmicas do mercado e causar efeitos de longo prazo no comércio global.
Juntas, ou combinadas de diferentes maneiras, essas tendências terão efeitos em cascata que se estenderão a todos os cantos do setor agrícola (ver sidebar – “As commodities e as quatro tendências”). É fundamental que todas as partes envolvidas levem em consideração tais tendências – e a disrupção em potencial que elas podem causar – ao tomarem decisões estratégicas, de forma a garantir um futuro com maior resiliência. No artigo a seguir, discorremos sobre as quatro tendências, incluindo uma discussão de cenários que podem afetar como elas poderão se desenvolver.
Vamos comer de forma distinta
A maior parte das pessoas ao redor do mundo ingere uma quantidade de calorias maior do que a necessária. Isto é particularmente verdade em países desenvolvidos da Europa e da América do Norte, ainda que até mesmo algumas economias em desenvolvimento na Ásia e na América do Sul observem um consumo calórico médio individual acima dos níveis recomendados. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a combinação de maior ingestão calórica e menor atividade física fez os índices de obesidade mundiais triplicarem desde 1975, sendo que a maior parte da população do mundo vive em países nos quais as doenças não transmissíveis ligadas ao excesso de consumo – tais como doenças cardiovasculares, diabetes e câncer – matam um número maior de pessoas do que a fome.
Em paralelo, à medida que os mercados em desenvolvimento amadurecem e se tornam mais ricos, as dietas de suas populações migram para regimes com um maior consumo de carne. De fato, nossa análise mostra como o consumo de carne se estabiliza nos níveis mais altos de renda em comparação a produtos alimentícios mais baratos com base em açúcar. Neste sentido, a rápida urbanização e a pujança da classe média da China foram acompanhadas de um aumento substancial no consumo de carne nos últimos anos. Segundo análises da McKinsey, metade do aumento global do consumo de carne da última década pode ser atribuído à China.
Desenvolvemos dois cenários relacionados ao que comemos que podem afetar o setor nos próximos anos.
E se combater a obesidade se tornar uma prioridade mundial?
De acordo com o Euromonitor, o açúcar tomou a frente e se tornou o tema central no debate sobre alimentação saudável. Um relatório da EAT-Lancet Commission7 argumenta que, para combater a obesidade, o consumo global de frutas, vegetais, oleaginosas e legumes terá de dobrar, enquanto o consumo de alimentos como carne vermelha e açúcar deverá ser reduzido em mais de 50%. Nos Estados Unidos, entre 2000 e 2018, o consumo per capita de xarope de milho rico em frutose caiu 40% desde seu pico.
Fatores tanto de repulsão como de atração tiveram papéis importantes nessa redução. Dentre os fatores de repulsão, podemos citar o fato de muitos governos estaduais e municipais nos Estados Unidos terem implementado ou estarem discutindo a regulamentação e a criação de impostos sobre refrigerantes, incluindo estados como Califórnia, Illinois e Nova York. Quanto aos fatores de atração, a expansão de novos sucos, smoothies e bebidas esportivas oferecem aos consumidores alternativas às bebidas gaseificadas tradicionais, que possuem alto grau de xarope de milho rico em frutose em sua composição nos Estados Unidos.
Se esse movimento tiver continuidade e a obesidade passar a ser vista como uma das grandes ameaças à saúde no século 21, o mercado internacional de açúcar poderá ser afetado, com potencial de atingir países exportadores como Austrália, Brasil, Índia e Tailândia. Isso também pode ter impacto nos mercados de biocombustíveis, dada a relação de produção entre açúcar e etanol. Se houver menor consumo de açúcar, um volume maior poderá ser usado para a fabricação de etanol, aumentando a oferta deste combustível e reduzindo seu preço no curto prazo.
Um relatório da EAT-Lancet Commission argumenta que, para combater a obesidade, o consumo global de frutas, vegetais, oleaginosas e legumes terá de dobrar, enquanto o consumo de alimentos como carne vermelha e açúcar deverá ser reduzido em mais de 50%.
E se a ‘carne 2.0’ se tornar comum?
Nas últimas duas décadas, a principal razão para o aumento da produção de soja foi o aumento do consumo mundial de carne, em especial na China. Para atender a esta demanda crescente, foi necessário aumentar a produção de soja para uso como ração animal, particularmente na América do Sul e na América do Norte. A exportação total de soja praticamente dobrou entre 2008 e 2018 nestas regiões – passando de 73 milhões de toneladas a 143 milhões de toneladas.
Essa subida pode acabar se estabilizando à medida que a renda na China deixar de aumentar, resultando também na desaceleração do crescimento no consumo de carne. Outros efeitos incluem a busca das pessoas por dietas mais saudáveis, o crescimento da intolerância com relação ao tratamento dado aos animais e uma maior conscientização quanto aos efeitos negativos dos rebanhos para as mudanças climáticas. De fato, os consumidores convencionais de carne devem continuar a ser a parcela mais relevante do mercado, mas a definição de carne tem se expandido para incluir uma variedade de substitutos de carne e produtos alternativos, chamados de “carne 2.0”. Estes produtos incluem, por exemplo, “carne artificial” —que apresentou uma queda de 99% no preço entre 2013 e 2017 e possui um efeito menor sobre o clima do que a produção usual de carne.
Mas antes das carnes artificiais chegarem ao mercado, uma parte ainda mais significativa do mercado de consumo de carne vem crescendo rapidamente: produtos substitutos de carne feitos de, por exemplo, proteína de soja, batatas, óleo de girassol e proteína de ervilha. Pesquisas mostram que a maior parte da população estaria disposta a experimentar produtos substitutos de carne, ou carne vegetal. Este segmento está se expandindo rapidamente e atraindo financiamento de empresas de venture capital, bem como de organizações já bem estabelecidas no mercado; além disso, as empresas de substitutos de carne já começaram a abrir seu capital e ter ações comercializadas em bolsa. Segundo uma dessas startups de produtos substitutos de carne, 93% de seus consumidores também compram carne animal. O aumento da produção de carne artificial pode ser um fator de influência para o crescimento do tamanho total do mercado de proteína de carne. Como resposta a esse movimento, empresas de produtos agrícolas e alimentícios devem considerar se, como e em que medida poderiam entrar no mercado de carnes “alternativas”.
Vamos comprar de lugares diferentes
O panorama mundial de regiões produtoras de alimentos irá mudar. Isto pode ocorrer devido ao impacto das mudanças climáticas (por exemplo, secas e temperaturas mais altas em alguns lugares) ou à redução de custos (por exemplo, energia). Custos mais baixos de energia podem permitir a redução do custo do abastecimento ou da dessalinização da água, bem como sua canalização para que possa ser levada a regiões sem acesso a ela – e isto pode ajudar a tornar cultiváveis algumas áreas que hoje não são viáveis para a agricultura.
Desenvolvemos dois cenários relacionados ao local em que compramos alimentos que podem afetar o setor nos próximos anos.
E se a China dobrar sua produção de soja ou passar a importar mais de seus países vizinhos?
A China se tornou o maior importador de soja do mundo. A água é seu maior gargalo para expandir sua produção agrícola interna. No entanto, se os custos de energia diminuírem a ponto de tornar a dessalinização da água algo economicamente viável, terras cultiváveis que hoje não são utilizadas poderão estar disponíveis para o plantio por meio de irrigação. Isto pode afetar substancialmente o comércio global: em 2018, a China importou 91 milhões de toneladas de soja. Em um cenário de “business as usual”, em que nada muda, esse volume pode chegar a 108 milhões de toneladas até 2028. Mas desenvolvimentos tecnológicos nas áreas de energia e dessalinização podem permitir que novos produtores na China, em seus países vizinhos e na África sejam capazes de suprir uma parcela importante da demanda chinesa, substituindo assim alguns dos atuais exportadores ocidentais que despacham seus produtos para o Leste da Ásia. Se as importações da China provenientes do Ocidente se mantiverem nos mesmos níveis de 2018, haverá uma redução de 10% no volume do comércio global.
E se a África se tornar um grande produtor agrícola?
Em paralelo, mudanças em outras partes do mundo podem tornar regiões como a África mais viáveis para um aumento na produção agrícola. O continente é geralmente percebido como um player improvável, mas de alto impacto para o setor agrícola. O potencial é imenso, mas a África enfrenta desafios substanciais – incluindo acesso à energia e à irrigação, bem como a necessidade de infraestrutura básica – que questionam suas possibilidades de ascensão e destaque. A participação de investidores asiáticos no desenvolvimento de infraestrutura pode se tornar um fator decisivo para acelerar o caminho do continente em direção à autossuficiência, em vez de permanecer como importador líquido, especialmente para açúcar e milho. Isto terá efeitos importantes para os países que exportam para a África, tais como França, Rússia e Estados Unidos.
Vamos produzir alimentos e comercializá-los de maneira distinta
Tecnologias digitais estão cada vez mais comuns na cadeia de suprimentos agrícola, reduzindo assimetrias de informação, ampliando a transparência e elevando os ganhos de produção a novos patamares. Até o momento, tecnologias de cultivo fizeram o setor avançar quatro “eras” e continuam a definir a maturidade dos países produtores. Por exemplo, no que se refere à produtividade do milho, a África e a Índia permanecem no primeiro estágio, chamado de revolução verde, que é definido pelo uso de fertilizantes e pesticidas. A Argentina, o Brasil e a China estão na fase da agricultura moderna, que envolve novas gerações de produtos para proteção de cultivos e novos métodos agrícolas – por exemplo, mecanização. A União Europeia e os Estados Unidos avançaram para a agricultura do século 21, caracterizada por uma agricultura de precisão – por exemplo, empregando análises avançadas para aplicar produtos de proteção de cultivo e nutrientes em níveis variáveis. Nos próximos anos, somente os produtores que souberem utilizar a agricultura de precisão com excelência estarão prontos para se beneficiar da nova geração de tecnologias agrícolas da quarta era. Embora ainda distante, essa era trará proliferação de biotecnologias, edição genética (como CRISPR) e automação, incluindo robôs agrícolas para monitoramento do campo e colheita das plantações.
Nos próximos anos, somente os produtores que souberem utilizar a agricultura de precisão com excelência estarão prontos para se beneficiar da nova geração de tecnologias agrícolas da quarta era.
E se a digitalização da cadeia de suprimentos eliminar a assimetria de informação?
Prevemos um futuro em que as plataformas digitais permitirão total transparência e rastreabilidade por toda a cadeia de suprimentos – criando um ambiente em que atores da cadeia de suprimentos poderão comprar e vender uns dos outros com maior facilidade, comparar preços e avaliar e classificar os fornecedores. Um mercado online do agronegócio atual reúne aqueles que buscam comprar e vender equipamentos agrícolas, seguros, terras para cultivo, ferramentas e veículos. Este ambiente poderá levar ao surgimento de plataformas de comercialização online para produtos agrícolas – confiando em moedas virtuais e empresas de tecnologia financeira para incentivar a compra e a venda de insumos agrícolas.
Essa transparência pode também reduzir as margens de intermediários, tais como distribuidores e traders. Em outros setores, como transporte, o excedente criado pelo aumento da transparência na cadeia de suprimentos foi transferido aos consumidores finais. De fato, as margens comerciais das commodities agrícolas têm diminuído, com uma queda de 15% em 1998 para 9% em 2018. Retornos mais baixos tornam a capacidade de ser competitivo em termos de custo – o que hoje é, em grande parte, obtido por meio da adoção de tecnologia – ainda mais relevante.
Vamos comercializar com base em regras diferentes
Subsídios e taxas de exportação podem modificar as dinâmicas do mercado e deslocar a posição competitiva dos países em todo o mundo. Claramente, qualquer manipulação das dinâmicas de mercado pode fazer acumular distorções umas sobre as outras. Por exemplo, ainda que as taxas de exportação possam dar aos governos de certas regiões fundos adicionais no curto prazo, elas também alteram a competitividade de custo de produtores na curva de custo e impactam os pools de lucratividade.
Desenvolvemos um cenário relacionado à forma de comercialização que pode afetar a indústria nos próximos anos.
E se criarmos um mundo de subsídios ou se uma reversão no crescimento comercial causar menor crescimento econômico?
As consequências de subsídios, taxas de exportação e reduções no crescimento comercial são sentidas de maneira mais aguda pelos exportadores; com os subsídios direcionados a certos produtores, independentemente de eficiência ou produtividade, curvas de custo de commodities já achatadas ficam ainda mais chatas. Em alguns casos, a lucratividade pode ser afetada em cerca de 50%. O efeito dessas ações governamentais pode ter um impacto de longo prazo nos mercados. Da mesma forma, medidas de restrição ao comércio, se continuarem a aumentar, podem reduzir o crescimento econômico total, levando à paralização do crescimento do volume de commodities comercializadas. O resultado disso é que a aceleração do consumo de proteína, que discutimos previamente neste artigo, poderá ser reduzida.
Desenvolvimentos em mudanças climáticas, guerras comerciais, novas tecnologias e escolhas dos consumidores podem levar a uma revolução na forma pela qual comemos, produzimos, escolhemos e comercializamos alimentos. Estas disrupções em potencial da cadeia de suprimentos traz riscos para as partes envolvidas no setor agrícola – de agricultores, provedores de insumos e traders a empresas de bens de consumo, investidores e formuladores de políticas públicas. É fundamental que os envolvidos levem em consideração essas tendências ao criar suas estratégias. Aqueles que o fizerem aumentarão suas chances de criar valor, mesmo em face da disrupção.
Fonte: McKinsey & Company