O Projeto de Lei (PL) 1.397, que institui medidas emergenciais para agentes econômicos em crise e aprovado na Câmara dos Deputados na semana passada, merece ser amplamente debatido para ser aprimorado no Senado Federal. Pretendo limitar-me a apontar apenas algumas das violações à Constituição Federal, além de sucintamente apontar o equívoco da intervenção do Poder Judiciário na negociação preventiva.
Em primeiro lugar, o PL 1397 estabelece um prazo de moratória de 30 dias, para toda pessoa jurídica de direito privado quali!cada como agente econômico. Porém, há devedoras que estão com os estabelecimentos fechados, como as livrarias, porém há devedoras que estão aumentando suas receitas com a pandemia, como as fabricantes de equipamentos hospitalares.
Serão apresentados milhares de pedidos de negociação preventiva de todo e qualquer agente econômico, de boa-fé ou não
Instituir tratamento idêntico a devedores em situação econômica distinta fere o princípio da igualdade, que consiste em tratar os desiguais de forma desigual. Além disso, as restrições a direitos não podem ser excessivas. Não há sentido em permitir a um supermercado, não prejudicado pela pandemia, deixar de pagar o aluguel ou o preço devido a um pequeno fornecedor de frutas.
Uma moratória absoluta, para todos os devedores, viola uma máxima que deve orientar a formulação de leis que restringem direitos fundamentais: a proporcionalidade. O PL não se pauta pela observância deste importante postulado, como ocorreu, por exemplo, nas medidas adotadas para redução de consumo de energia elétrica, que não foram idênticas para todos os consumidores (cf. ADC 9 - STF).
Superado o prazo de 30 dias de moratória previsto no PL 1397, poderá o devedor judicializar a crise, mediante simples prova da redução de mais de 30% do seu faturamento, sem o ônus de demonstrar que formulou propostas razoáveis aos seus credores. O devedor, ao ingressar em juízo com o pedido de negociação preventiva, ganhará um prazo de 90 dias de proteção contra os credores.
O resultado desse incentivo ao uso do Poder Judiciário apenas para que seja iniciada outra rodada de negociação é evidente. Serão apresentados milhares de pedidos de negociação preventiva de todo e qualquer agente econômico, de boa-fé ou não, retirando os escassos recursos materiais e humanos do Poder Judiciário para atender o aumento natural da demanda de recuperações judiciais e extrajudiciais.
Não há razão de impor a quem tem a missão constitucional de solucionar con"itos, em caráter de!nitivo, mediante a adequada interpretação da lei, ter que carimbar um requerimento de negociação preventiva. É um equívoco instituir a reserva de jurisdição para o diálogo e a negociação entre agentes econômicos, podendo emanar a proteção contra credores de qualquer ato formal arquivado em órgão público ou entidade de classe, ou mediante simples comunicação aos credores, impondo-se ao devedor a guarda e conservação dos documentos enviados para o início da negociação.
É verdade que o PL tenta evitar que a Justiça seja sobrecarregada, proibindo qualquer manifestação dos credores acerca do pedido de negociação preventiva do devedor, mas a tentativa é precária. Suponha-se que, após o deferimento do pedido, um credor tenha prova documental de que o devedor suportou redução de apenas 10% do faturamento. Não se pode impedir este credor de alegar que o devedor cometeu uma fraude, requerendo a imediata cassação do benefício.
Confesso que não conheço um procedimento de jurisdição voluntária que coloque uma camisa de força no juiz. A norma que se pretende inserir em lei, proibindo o Judiciário de atuar diante da lesão a um direito, é "agrantemente inconstitucional.
O PL também atribui ao órgão jurisdicional competente para o processamento de um pedido de recuperação judicial a competência para o exame do pedido de negociação preventiva. Ocorre que a cada um dos Tribunais de Justiça dos Estados é reservado o poder de organizar as suas unidades jurisdicionais, atribuindo-lhe as respectivas competências. Uma lei federal não pode atribuir ao juízo da recuperação a competência sobre a negociação preventiva porque viola a autonomia dos Tribunais de Justiça, assegurada pela Constituição Federal. Além disso, a medida tem um impacto sequer imaginado pelos seus elaboradores.
O maior Tribunal de Justiça do país não foi consultado sobre os drásticos efeitos do PL na estrutura judiciária. As graves consequências que uma medida legislativa pode causar no Poder Judiciário também foram levadas em consideração pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, ao suspender a imediata instituição do juízo de garantia previsto na Lei 13.964/2019 (ADI 6298).
Por fim, não há razão para um projeto emergencial, que cuida de efeitos econômicos negativos resultantes do combate à pandemia, determinar, de forma irrestrita, “a suspensão dos atos administrativos de cassação, revogação, impedimento de inscrição, registro, código ou número de contribuinte fiscal, independentemente da sua espécie, modo ou qualidade fiscal, sob a sujeição de qualquer entidade da federação que estejam em discussão judicial, no âmbito da recuperação judicial”.
O crédito tributário ou decorrente de sanção administrativa não se sujeita à recuperação porque incide o regime jurídico de direito público. Ademais, a introdução de medida cujo impacto é atingir a esfera jurídica do titular do crédito tributário em lei ordinária viola a Constituição Federal, que reserva esta matéria à lei complementar.
Fonte: Valor Econômico